TEXTOS

MINHA HISTÓRIA

Nasci na cidade de Porto Alegre em 1960. Comecei minha vidinha na região central da capital, mas muito cedo nos deslocamos para um bairro, o Parque São Sebastião onde a vida era bem diferente, principalmente por ser um lugar onde ainda existiam tambos de leite e poucas casas. A infância livre, de brincadeiras na calçada, de famílias que se conheciam, não só os da mesma rua, mas do bairro, marcam a gente profundamente.

Passei minha adolescência mais restrita ao bairro, ao contrário de meu irmão, Renato Almendares que vivenciou os anos 70 e 80 no esplendor dos movimentos culturais da época, sorvendo a vida na Cidade Baixa, Bom Fim e o bairro mais retirado, mas não menos importante, IAPI.

Quando chega a época da faculdade faço um curso que nada tinha a ver comigo, o curso de Ciências Contábeis na Faculdade São Judas Tadeu.  Trabalhei como bancária no Sulbrasileiro e peguei o período da intervenção do Banco Central e a criação do Meridional. Casei com Sergio Luiz Ferandin, que sempre me apoiou nesse percurso e ficamos ainda por uns dois anos em Porto Alegre. Assim que termino a faculdade começo a procurar cursos de arte e chego no Atelier Livre e no Atelier de Vera WIldner onde estudei pintura com Alice Brueggman. Foi quando tive contado verdadeiramente com o mundo da arte. Começo a entender o sistema, a inserção nas galerias de arte e instituições. Era final dos anos 80 e início dos 90. O mercado de arte estava em alta, para o bem e para o mal, com muitas galerias, muitas exposições que hoje consideraríamos luxuosas com belos catálogos, convites e coquetéis. No geral estes custos ficavam por conta da galeria e seus patrocinadores e cabia ao artista apenas repassar a comissão das vendas. Digo acima para o bem e para o mal, porque do meu ponto de vista, surgiram muitos “artistas” com produções em série, cuja preocupação maior eram as vendas e não o conteúdo de seus trabalhos. Mas foi uma época maravilhosa pois tive a oportunidade de estar perto de Alice Brueggman, Alice Soares, Plínio Bernhardt, Paulo Porcella, Nelson Jungbluth, Danúbio Gonçalves, Vasco Prado e Zoravia Bettiol. Um dia de chuva dei carona, no meu fusquinha para Iberê Camargo. Foi uma bela conversa de percurso e eu me senti o máximo! Tive também a oportunidade de conhecer, além de muitos outros galeristas, Milton Couto e Déssio Presser da Galeria Arte Fato, arrojados e inovadores na época. Décio está até hoje com a Arte Fato mantendo seu propósito de apoiar novos artistas. O querido Milton nos deixou muito cedo.

Eu estava afastada da academia o que me fez perder um seguimento muito importante da produção artística da época, porém, de certa forma, resolvi esta lacuna quando mais tarde fui estudar com Maria Helena Bernardes e tomar par de um amplo espectro da arte contemporânea, brasileira e internacional.

Cheguei em São Leopoldo no inicio dos anos 90 e continuei estudando e trabalhando em Porto Alegre onde mantinha um atelier no bairro Petrópolis com a artista Carmen Medeiros. No atelier Livre estudava xilogravura com a maravilhosa artista Maria Conceição Menegassi. Com o tempo acabou ficando inviável manter o atelier na capital e me instalei definitivamente em São Leopoldo, mas continuei os estudos de gravura no Atelier Livre e de pintura com Alice Brueggmann.

Chegando aqui fui procurar os artistas da cidade. Era o momento em que Liana Brandão tinha seu espaço de arte e Carlos Gallo dirigia a Galeria Gestual. Aos poucos fui tomando conhecimento dos movimentos culturais de uma cidade que era, e ainda é, rica em cultura. Havia um desejo de se reeditar o Clic Centro Livre de Cultura que nos anos 80 reunia diversas manifestações artística promovendo inclusive salões de arte.

Participei de uma exposição na fundação Cultural (atual Centro Cultural José Pedro Boéssio) lá conheci Suzane Wonghon e em seguida conheci Alice Benvenutti, Edi Daudt, Cristina Daudt Zeni e Marcelo Zeni, Mai Bavoso, Zé Martins, Eclair Moehlecke, Ariadne Decker e a querida Andrea Zucolloto, que há pouco nos deixou. Com apoio de Helena Salvetti acabamos criando o Arte 15 um espaço de exposições e comercialização dos trabalhos do grupo, que permaneceu ativo por 20 anos, mas eu saí acho que ainda na sua primeira década. Foi um bom tempo, com muitas exposições, artistas convidados e parceria com arquitetos. Participei também do Conselho de Cultura na época de sua criação quando o presidente era o professor Telmo Lauro Müller.

Hoje a cidade continua rica em artistas mesmo que carente de espaços expositivos. Cito alguns nomes com a certeza de que deixarei de fora pessoas muito importantes, mas cito aqueles que tenho maior proximidade além dos que já citei acima como Lurdi Blaudt, Rosana Krug, Rogério Severo, Maristela Schmidt, Helaine Heylmann, Margit Kolling, Lúcia Passos e o Grupo Corpos & Sombras com Cláudia Severo e Filipe Farinha. O Palco aberto realizado pelo Corpos & Sombras prova a riqueza cultural da região. A cada apresentação uma quantidade de artistas “sobe” ao palco e mostra seu talento.

Voltando ao meu trabalho. Foram muitas exposições realizadas tanto no Brasil como no exterior. Eu tinha a ideia de que realizar muitas exposições e ter um vasto currículo era fator legitimador de produção. Hoje não penso assim. Acredito que se o artista for capaz de realizar um trabalho realmente significativo é suficiente, mas tem que ser significativo, tem que agir no tecido social… de alguma forma.

Com a virada do milênio resolvi fazer uma pós-graduação em Design o que mudou muito o encaminhamento de meu trabalho. Dividi minha atuação entre o Design criando junto com a artista e grande amiga Fernanda Soares, a Design de Atelier sem deixar de lado a produção artística. Pelo contrário, o vídeo e a fotografia entraram no universo de minhas criações a ponto de me despertar o interesse para outra pós-graduação, agora em cinema, as duas realizadas na UNISINOS.

Em 2008 realizei meu primeiro projeto com caráter mais coletivo intitulado Mil Mãos. Eu entregava aos artistas um kit que continha um panfleto explicativo, dez papeis nas dimensões de 5 x 7cm e uma caneta nanquim. A proposta era que cada artista se expressasse naqueles pequenos papeis que eram depois costurados por mim formando pequenos conjuntos de trabalhos. Na primeira etapa reuni artistas de São Leopoldo, Porto Alegre, Novo Hamburgo, São Paulo e uma artista da Holanda, Estes trabalhos foram expostos em Lisboa onde artistas portugueses também foram incluídos no projeto assim como uma artista do México. Retornando ao Brasil o projeto foi apresentado em São Leopoldo, em Porto Alegre e em Novo Hamburgo.

Este trabalho está registrado em www.milmaos.com.br

2014 foi ano em que iniciei o projeto Maravilhas Histórias e Memórias Afetivas contemplado pelo Prêmio FUNARTE Mulheres nas artes visuais. Neste trabalho o vídeo e as narrativas foram o ponto central. O início se deu com meu pai, Air Almendares, contando a história de uma praia chamada As Maravilhas onde veraneávamos entre os anos 60 e 70. A praia teve seu momento de grande atividade e depois se transformou em ruínas e é essa história que o pai relata. A partir daí o projeto passa a ser uma parceria minha e de meu irmão, o Renato Almendares que continua até hoje sendo fonte inspiradora, parceiro e interlocutor amoroso para as grandes questões existenciais  com seu olhar de filósofo. Com o prêmio tivemos a oportunidade de realizar mais quatro vídeos. Viajando pelo extremo sul do país registramos histórias em Santa Vitória do Palmar, Ilha dos Marinheiros em Rio Grande, Ilha da Feitoria em Pelotas e São José do Norte.

Os vídeos foram apresentados em Pelotas numa coletiva no espaço Triplex. O evento lindo chamado Encontro nas Areias onde também participavam Maria Helena Bernardes e nosso querido e saudoso músico Fernando Mattos, além dos artistas Kelly Xavier, André Severo, Marta Gofre e Rogério Marques.  Ainda em Pelotas realizamos uma bela mostra no Espaço Casarão n 6 da Secretaria de Cultura. Em Santa Vitória do Palmar a exposição aconteceu no belíssimo Teatro Independência. Em Rio Grande apresentamos na FURG numa produtiva integração com os alunos da faculdade. Em São José do Norte a exposição aconteceu na Hidroviária da cidade. Foi uma mostra riquíssima com a frequência dos moradores e turistas da região. Em Porto Alegre apresentamos no Atelier Livre da Prefeitura e em Novo Hamburgo fez parte da exposição Travessias: o mesmo e o outro, na FEEVALE, com curadoria de Lurdi Blauth.

Todos os dados e vídeos desse projeto estão no site

 www.maravilhasmemoriasafetivas.com.br

Além do meu irmão outras três pessoas foram de grande importância para minha visão de mundo na virada do século. Uma foi e continua sendo, Maria Helena Bernades que com suas sabedoria e generosidade me fez ter a consciência da importância da arte e da cultura em todo o decorrer da história da humanidade, a atualização em relação aos artistas contemporâneos e a relação de suas produções com o ‘estar no mundo’. Fernando Mattos me deu a honra de ter trilhas originais criadas para meus vídeos, além das maravilhosas aulas sobre a história da música. Porém mais que isso a convivência com essas pessoas de tamanha generosidade e amor pela vida me enriqueceram. Outra influência de grande importância é a de Ana Flávia Baldisserotto. Nos nossos encontros no Laboratório de Práticas e também na vida, sua forma delicada por um lado e por outro suas profundas, firmes e seguras convicções, foram sempre inspiradoras. Ana Flávia é daquelas pessoas que conseguem perceber nos trabalhos mais diversos, onde está aquele fio condutor que merece atenção e desenvolvimento. Esses foram e continuam sendo mais que orientadores, são amigos verdadeiros.

Atualmente estou dedicada a realização de livros de artista que foram a forma encontrada para lidar com a distopia que enfrentamos no nosso país. Sempre que eu lia e via as fotos da Alemanha nazista, com aquelas multidões apoiando Hitler eu ficava pensando como uma sociedade culta como a alemã foi capaz de apoiar aquela figura patética? Como a classe média e os empresários puderam olhar para o lado para não ver o que estavam fazendo com os judeus, homossexuais e ciganos afim de manter e fazer crescer seus negócios? Como, por outro lado, Hitler conseguiu criar o grande inimigo a ser vencido, o judeu, e convencer as pessoas a se tornarem algozes de uma comunidade, delatores de vizinhos e antigos amigos? Tudo isso, na minha ingenuidade, parecia um horror e absurdo que jamais seria repetido. Mas não durou muito essa ingenuidade, bastou começar a perceber as manipulações da percepção coletiva que ocorriam no Oriente Médio e para minha grande tristeza ver todo o processo ocorrendo diante de meus olhos no nosso país. Vi a criação, por parte da extrema direita e das forças do capital internacional, do grande inimigo a ser vencido, o PT e os vermelhos, estou vendo a classe média e empresários olhando para o lado afim de não enxergarem o aumento acelerado de feminicídios, mortes de homossexuais, ciganos e índios, estes com aumento de 250% em relação a 2018, morte de integrantes de movimentos sem terra e sem teto, ameaças de mortes a filósofos, sociólogos e políticos que tiveram de sair do país, a quantidade crescente de moradores de rua e a devastação da natureza. Nada disso conta desde que as riquezas do país sejam entregues ao capital estrangeiro e o mercado financeiro obtenha maiores rendimentos.

Desta forma para melhor entender o que está acontecendo e quais as características de nosso povo que fazem uma parcela da população se identificar e se sentir muito bem com propostas autoritárias, racistas, machistas e misóginas é que fui estudar nossa história desde a colonização, passando pela velha república até chegar nossos tempos. Na verdade, minha primeira investida foi escrever um artigo onde eu relatava tudo o que tinha acontecido em 2019. Quando pronto percebi que poderia ser transformado em livro e resolvi com apoio do Renato, criar uma ficção onde num passeio de barco que se daria em 2049 os irmãos Rosana e Renato relembram este artigo. O livro intitulado A Lagoa é todo ilustrado com desenhos referentes a essa navegação e termina com a pergunta “Como Sobrevivemos?”

Em seguida vieram os Cadernos de Estudo. Meus estudos a princípio resultavam em anotações em um caderno e que a medida que eu anotava eu também ilustrava. Foi assim que vi que poderiam vir a ser livros de artista. Desmembrei o conteúdo em três volumes, mantive a característica de caderno reproduzindo em papel próprio para aquarela, as linhas e pautas e fiz a encadernação característica. Cada livro possui o encarte do Gatinho que cansa. As anotações desses encartes são conduzidas pela imagem de meu gato que imagino que canse de ver a humanidade ser capaz de repetir os erros históricos em pleno século XXI.

Como desdobramento desses livros surgiram as Filipetas para pensar que são pequenos panfletos abordando diversos assuntos, um em cada panfleto, como proposta de reflexão. As Filipetas são distribuídas no espaço público, em praças, em paradas de ônibus, em mesas de bares ou no trem. Como diz Rogério Anitablian é necessário que se qualifique o debate e que as pessoas recuperem sua percepção que foi sequestrada. Esses trabalhos podem ser conferidos em http://www.almendares.com.br/2016/07/18/livro-de-artista/

Encerro este depoimento com o trecho final do livro A Lagoa.

Como sobrevivemos?

A tarde caía e já era hora dos irmãos voltarem para casa.
Os dois se olharam e, sem dizer uma palavra, pensaram juntos: como sobrevivemos?
Neste momento, olhando para o barco e para a lagoa, percebendo aquele universo à sua volta e pensando em tudo que já tinham realizado a partir da observação desse entorno, perceberam que ali estava a resposta.

O AVESSO DO SENTIDO – TEXTO PARA ANA CATTANI

 

“Nosso tecido social está rasgado”. Esta frase que poderia ser um desabafo pichado em um muro ou gravado em pedra, num gesto impregnado de força, para nunca mais ser esquecido, nos é apresentada por Ana Cattani através do bordado. Mesmo sabendo que na história não foram poucos os homens a usarem este meio magistralmente, o bordado carrega a imagem de algo delicado realizado por pacientes mãos femininas. Filmes ou mesmo pinturas de época mostram mulheres tentando preencher um tempo enfadonho com a feitura de peças e peças requintadas, que vão adornar seus lares. Mal sabem aqueles que fazem essa rasa leitura, a força que tem esta prática. A força do recolhimento e devaneio de pensamentos solitários ou o poder agregador, quando mulheres reunidas em grupos fazem, a partir deste simples ato de bordar, verdadeiras revoluções nas mais diferentes classes sociais.

E é assim, fazendo uso da arte e nesse trabalho, do bordado, que Ana vem enfrentando o momento em que o país se encontra. As contradições que estamos vivendo nos é apresentada através de outra contradição: a delicadeza que envolve o conceito de bordado e a força do pensamento da artista.

Vivemos envoltos em uma trama que vem sendo tecida durante toda a história da humanidade por parte dos detentores do poder, seja religioso, seja econômico. Como em ondas, picos de autoritarismo e terror tomam conta das sociedades em todo nosso planeta. As populações oprimidas, com maior ou menor grau de sucesso, vão aplacando o despotismo, mas em muitos casos parece que quanto maior o sucesso desta população, mais avassalador é o novo pico de autoritarismo. O segundo milênio acenou novamente com uma brecha de luz a partir da ascensão em diversos países de regimes progressistas, munidos do desejo de justiça social e redução das desigualdades, o que provocou uma nova trama conservadora onde antigos métodos já maduros e experimentados se uniram à novas tecnologias. Esses movimentos deixaram parte da população perplexa diante da contradição entre avanços tecnológicos e retrocesso civilizatório.

As forças conservadoras, como parte de seu método, insistem em apresentar o mundo de hoje como algo comum e aceitável. A desigualdade, o autoritarismo, o individualismo, o ataque aos povos originários e as alterações na natureza são, na verdade, resultado de nossas escolhas e não algo normal.

O jurista Rubens Casara aponta o fato de que estamos regidos por três forças fundamentais: a força da dessimbolização, o imaginário autoritário e a racionalidade neoliberal.

A dessimbolização se dá quando tudo e todos passam a ser considerados objetos negociáveis, se tiverem valor de uso, caso contrário são descartados, sejam coisas, sejam pessoas, sejam princípios. Os limites éticos deixam de existir e tudo é justificado em nome do fim a ser alcançado. Perde-se a ideia do “comum”, daquilo que é inegociável, que diz respeito a todos nós, condição para que possamos viver de maneira civilizada e minimamente digna. Acompanha esse processo a conduta anti-intelectualista e a demonização da cultura que é o espaço de reflexão, e neste contexto perdemos a linguagem que passa a ser substituída por slogans, por chavões argumentativos que impossibilitam o diálogo.

Junto com a dessimbolização está a criação do imaginário autoritário onde para alcançar vantagens pessoais ou mesmo resolver problemas sociais, o uso da força é sempre justificado. O imaginário autoritário abre espaço para a ideia de que alguém portando uma arma, forjando a imagem de um pai autoritário será a solução para os problemas do país. É quando autoritarismo se instala em todo os cantos, do delegado de polícia ao juiz da suprema corte e todos os limites passam a ser borrados em nome de interesses.

Por fim a racionalidade neoliberal que vê o Estado como instrumento a serviço do poder econômico. Daí a busca de justificativas para o Estado mínimo. Esta racionalidade faz com que cada indivíduo veja a si próprio como empresário de si mesmo e o outro, mesmo os mais próximos, como concorrente, o inimigo a ser neutralizado ou destruído. A ideia de colaboração, de solidariedade, a ideia do outro como companheiro na busca da construção de uma sociedade melhor é descartada, ridicularizada e taxada como coisa do grande inimigo: o comunismo.

Quando o real se apresenta com tamanho empobrecimento do subjetivo, tamanha destituição de humanidade, tal empobrecimento da linguagem e total falta de pudor no uso da mentira, ficamos paralisados diante do avesso do sentido, sem entender e sequer conseguir verbalizar. Mas justamente este estado é o gerador da força que o autoritarismo tanto teme, a força da voz dos filósofos, artistas e todo o universo da cultura que devolve para a sociedade as reflexões na forma de suas produções. Aproveitemos então, cada frase, cada desenho, cada pensamento de Ana Cattani.

Rosana Almendares – artista visual e designes  

Apresentação – Clique no Título Abaixo

O Cancelamento de Mulheres na História da Arte

CONTRATUALIZAÇÃO DA CINEMATECA CAPITÓLIO, ATELIER LIVRE E PINACOTECA RUBEN BERTA

Porto Alegre – Abril 2020

Contratualização da Cinemateca Capitólio, Atelier Livre e Pinacoteca Ruben Berta

Por conta da pandemia provocada pelo coronavirus a prefeitura de Porto Alegre suspendeu os editais que pretendem terceirizar a gestão destas três instituições que representam importante patrimônio cultural gaúcho, a Cinemateca Capitólio, o Atelier Livre Xico Stockinger e a Pinacoteca Ruben Berta. A forma como o processo foi conduzido até então provocou a indignação da classe artística pela falta de consulta popular por parte dos governantes e pelas tentativas frustradas de diálogo e pedidos de explicações feitos ao prefeito Marchezan e seus secretários Luciano Alabarse, da cultura, e Thiago Ribeiro, de Parcerias Estratégicas.

Porto Alegre, assim como a esfera federal, está com seus postos públicos ocupados por pessoas que desprezam o “público”, que não reconhecem que os objetivos da gestão do patrimônio público divergem dos da gestão privada. A construção do discurso no qual tudo que é público é tido como ineficiente, enquanto a gestão privada é a competente e eficaz, não tem outro objetivo se não a entrega do patrimônio público  para o interesse privado e a transferência de responsabilidade.

O caso do Atelier Livre é emblemático de como uma instituição pode ser sucateada pelo próprio poder público, a fim de que ele a defina como ineficiente. Durante seus sessenta anos de existência o Atelier ofereceu cursos práticos e teóricos, e realizou diversas atividades paralelas como exposições, palestras e o Festival de Artes da Cidade de Porto Alegre. Mesmo com verbas mínimas, inclusive para manutenção do espaço físico, professores abnegados sempre desenvolveram projetos de qualidade buscando, além da formação dos alunos, a conexão com os moradores do entorno. Por anos novos concursos para professores vinham sendo solicitados. Já foram 38 professores noutros tempos e hoje são apenas seis, sendo que dois estão prestes a se aposentar. Os concursados garantem a continuidade da base estrutural do programa da escola livre com propostas que visam o aprofundamento do pensamento, o desenvolvimento das reflexões e do senso crítico. Mas os concursos nunca são abertos. Professores contratados para projetos de duração em torno de dois anos, tempo mínimo para o desenvolvimento de projetos consistentes são muito bem-vindos para pluralizar as propostas, mas isso deve ocorrer sem que se perca a base estrutural garantida pelos concursados.

Na divulgação da proposta da prefeitura de contratualização vemos argumentos como o fim da burocracia, como se essa burocracia não partisse da própria prefeitura e a falta de verba, questionada agora com o anúncio do repasse de  R$ 5,37 milhões em cinco anos para que uma organização da sociedade civil (OSC) assuma a gestão dos espaços. Ou seja, dinheiro público repassado para empresas privadas gerirem o bem público… Nas falas do prefeito e dos seus secretários se vê preferencialmente objetivos quantitativos das novas propostas: “A gente vai entregar aqui resultado, número de cursos e alunos que tenham acesso a isso…”… números, números, números….

Todos reconhecem a eficiência da atual gestão da Cinemateca Capitólio, assim como da Pinacoteca Ruben Berta o que leva a pergunta: por que o dinheiro público deve ser canalizado para um ente privado, como questiona Luiz Antônio Grassi, Presidente da Associação Amigos da Cinemateca Capitólio.

Os editais foram suspensos, mas o projeto continua e é preciso manter a resistência contra mais este descaso com o bem público.

TEMPOS DE INCOMUNICABILIDADE NA TERRA EXUBERANTE

Na Lagoa dos Patos
No barco
Eu e Renato divagamos
Vagamos
Contamos
Resistimos

NAVEGANDO

       VAGANDO

               ANDO

Numa terra longínqua, no extremo sul de um país exuberante, encontra-se uma extensa faixa de águas, de nome Lagoa dos Patos, que margeia diversas cidades de tradição pesqueira. Numa dessas margens descansa ancorado um pequeno e antigo barco de pescador que hoje cumpre outro papel, o de ser o refúgio de dois irmãos que, desfrutando de todos os mistérios que envolvem o universo da navegação, costumam passar horas a divagar, vagando, vagando…

Num dia de águas calmas e sol brilhante, partiram os dois irmãos a bordo do barquinho, levados pelo vento, deslizando pelas águas. Foram rumo a paisagens ricas em peculiaridades. Pássaros, andainas de pesca de camarão e pequenas casinhas de apoio construídas em plena lagoa ou em suas margens. Tudo compunha o cenário.

Navegaram até chegar a uma encantadora enseada. Lá, com água à altura dos joelhos, ficaram envolvidos com as lidas do barco e começaram a relembrar um tempo passado há trinta anos.

 Ontem encontrei um texto que tinhas me enviado em 2019 e que escreveste baseada em nossas conversas pelo Whatsapp –, disse Renato para Rosana enquanto arrumava as cordas que suspenderiam o “pano”, nome pelo qual é chamada a vela do barco naquela região.

 Na ocasião deste o título de “Tempo de incomunicabilidade na terra exuberante” para os fatos ocorridos após a eleição de Bolsonaro à presidência do Brasil, o deplorável representante da extrema direita.

O fato ocorrido foi, na verdade, um movimento mundial de ascensão da extrema direita, porém para o Brasil significou uma de suas piores experiências. Seu povo ficou dividido, amargurado e entristecido como há muito não se via. O ódio tomou conta da população, que, de uma hora para outra, sentiu que perdia totalmente a linha do razoável para qualquer discussão. À medida que o tempo passava, Bolsonaro cometia absurdos de toda sorte que causavam constrangimentos e prejuízos não só internos, mas na política externa. De um lado, o setor financeiro e os extremistas aplaudiam ou naturalizavam suas loucuras; de outro, opositores ficavam como baratas tontas sem ação, em choque, quase não acreditando no que acontecia. Muitos eleitores foram se arrependendo, mas não se sabia o que restaria do Brasil após essa experiência desastrosa.

Em meio a esse cenário, como tentativa de entendimento ou de simples registro de todo aquele horror, Rosana escreveu na época um texto baseado nas trocas de mensagens com Renato e enviou para ele. Naquela tarde, seu conteúdo foi relembrado.

 TEMPOS DE INCOMUNICABILIDADE NA TERRA EXUBERANTE

Quando se perde totalmente a linha do razoável para qualquer discussão, quando temos que ouvir que nazismo é de esquerda, que o golpe de 64 não foi um golpe e sim uma revolta, que não houve ditadura e sim uma democracia austera; quando temos que ouvir do ministro da educação que os bancos, as indústrias e a imprensa estão na mão de comunistas, criando o grande inimigo, o “comunista”, nos moldes do que ocorreu na Alemanha nazista em relação aos judeus; quando os maiores horrores são ditos diariamente por qualquer um dos integrantes da equipe deste governo, parece que se faz necessário retornar à origem dos conceitos, voltar aos fundamentos do pensamento, como, por exemplo, o que é ser de esquerda, o que é ser de direita. Qual é a diferença, na essência, entre essas duas formas de pensar o mundo e de estar no mundo?

Nesse sentido, podemos primeiro dizer o que não é. Não se trata de uma experiência empírica. A experiência de loucos e dementes em nome da esquerda ou da direita não define essas formas de ver, ser e estar no mundo. A diferença, na essência, entre esquerda e direita pode ser assentada em duas palavras, respectivamente: solidariedade e competitividade. Para a esquerda, através da solidariedade logra-se chegar a um mundo melhor para todos com garantias básicas de bem-estar social. Para a direita, a competição levará à evolução dos processos de produção e, como consequência, a uma distribuição dos recursos conforme a competência de cada um.

Herança escravocrata

Nesta busca pela origem das características atuais de nossa sociedade, o sociólogo Jessé Souza lançou livros e diversos artigos demonstrando que a população de nosso país traz em seu DNA uma herança escravocrata que naturaliza o fato de que algumas pessoas vivam sob condições mínimas, como se isso fosse um destino a ser repetido por gerações. Mostrou também que a parcela mais rica de nossa sociedade foi condicionada a pensar que as pessoas menos favorecidas não possuíam competência suficiente para melhorarem sua condição de vida num mundo competitivo, como se fosse possível, numa sociedade tão desigual quanto a nossa, haver condições justas de competição.

Essa terra exuberante chamada Brasil, que historicamente era governada por representantes do poder econômico e por famílias tradicionais, teve as primeiras experiências de valorização de seu povo na Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e na valorização da mestiçagem da população através da obra do sociólogo Gilberto Freyre. Essas, como outras tentativas posteriores, sempre foram reprimidas pelas classes dominantes, seja por golpes militares ou por um sofisticado mecanismo cultural de desvalorização do povo brasileiro e enaltecimento do estrangeiro, do norte-americano, do europeu e de seus descendentes aqui instalados. Nos últimos treze anos, o país estava novamente sob um governo progressista, com o Partido dos Trabalhadores (PT), quando, em gerações, pela primeira vez um integrante de família de baixa renda chegava à faculdade por meio de programas de cotas nas universidades e quando a casa própria deixava de ser um sonho para muitas pessoas, só para dar dois exemplos. Nesse período optou-se pelo desenvolvimento a partir do crescimento do mercado interno, gerando consumidores que ativavam a indústria e comércio, que geravam mais empregos, que ativavam a economia e geravam mais recursos através dos impostos. Aconteceu que, no momento em que o governo resolveu que projetos sociais eram considerados investimento e não gasto e que as pessoas de baixa renda foram incluídas no orçamento, a classe média ficou perturbada, uma vez que no seu entendimento esses recursos deveriam ser destinados a ela. Foi muito triste constatar que existiam pessoas incomodadas com negros nas universidades, ouvir comentários de que o aeroporto tinha deixado de ser um lugar de pessoas elegantes ou que tinha muito comércio popular nas ruas… Mas existe uma compreensão de que essas questões fazem parte de uma construção, de uma visão de mundo que vai se moldando com o andar do desenvolvimento das sociedades. Porém, o fenômeno Bolsonaro foi outra coisa.

Escolher o bolsonarismo significa desistir do processo civilizatório. Quando um candidato diz em campanha exatamente todos os horrores que pretende fazer e mesmo assim é eleito, significa que algo muito sério está acontecendo. Percebemos que o sentido da linguagem foi perdido. Absurdos foram ditos e as pessoas ouviam atentamente, como o de que a terra é plana, a ciência é uma mentira, existe o kit gay e a famosa mamadeira erótica, esses dois últimos sendo dos maiores exemplos das chamadas fake news, artifício utilizado de forma avassaladora em diversos países como técnica para derrubar governos ou eleger candidatos de extrema direita. A essa altura, percebemos que tínhamos perdido a capacidade de colocar o pensamento entre o desejo e a ação. Tínhamos voltado ao estado pré-civilizatório, voltado à selvageria.

Desejo de ruptura

Nesse ponto, um bolsonarista diria: é, mas o PT roubou. Sim, diriam muitos progressistas. Membros doPT tinham comprometido no mínimo 40 anos de luta por justiça social. Tinham dado argumentos para a ultradireita dizer que “esquerda nunca mais” e para ser aplicado aqui com sucesso uma forma de convencimento das massas utilizando as redes sociais através dos dados da empresa Cambridge Analytica, o mesmo sistema utilizado na Inglaterra para aprovação de Brexit e em países africanos, também para eleição da extrema direita.

Independentemente dos motivos do PT para realizar alianças inimagináveis anteriormente, tivesse sido a fim de possibilitar a governabilidade, ou para viabilizar os programas sociais, o fato é que o PT tinha dado motivo para o início de uma forte campanha, realizada pela grande imprensa, de criminalização do partido. Acrescente-se a isso algo que o filósofo Vladimir Safatle falou muito bem: o fato do fracasso do sistema político de coalisão, que em determinado momento estancou os sonhos de um futuro melhor para maioria das pessoas. Não existe, dizia ele,possibilidade real de mudança quando aqueles que querem que as coisas permaneçam como estão fazem parte da base de um governo. As classes mais privilegiadas da sociedade sempre tinham utilizado o Estado para defender seus interesses. A eleição de um partido progressista alimentou o sonho da população de ver corrigida essa distorção. Algumas conquistas foram realmente atingidas, mas não uma verdadeira correção da desigualdade ou o fim do uso da máquina em benefício das grandes fortunas. Constatou-se que o Estado era corrupto porque atendia os interesses privados e não à sociedade. A sensação que restou entre a população foi a de ruptura, e nesse ponto existiam duas opções: criar uma nova forma de organização que rompesse com os velhos pactos entre Estado e interesses privados ou terminar com o Estado, dar fim à solidariedade e, a partir dali, cada um por si.

A segunda opção foi escolhida e a porta para a ultradireita estava aberta. Porém, seu projeto jamais seria aceito nas eleições se tivesse sido apresentado da forma convencional. Aí entraram na história o personagem Bolsonaro e o fundamentalismo religioso para implantarem o novo regime de Estado policial e o ultraneoliberalismo econômico.

E a porta estava aberta para a extrema direita

A população simpatizante da ultradireita fascista sentiu-se autorizada pelo discurso de ódio proferido desde a campanha presidencial e saiu de seu esconderijo onde, antes envergonhada de seus pensamentos mais íntimos, fazia comentários racistas, machistas e homofóbicos apenas para os mais próximos nas piadinhas de almoço de domingo. O discurso de Bolsonaro autorizou o ataque aberto aos pobres, negros, índios e gays. Autorizou a violência contra as mulheres, que nunca tinha alcançado índices tão altos.

O caso da violência às mulheres foi emblemático. No mínimo uns cinco anos antes de 2019, já se constatava um grande aumento das notícias de agressões e feminicídios. Muitas pessoas se perguntavam o que poderia estar acontecendo para justificar um retrocesso dessa magnitude em relação a questões que pareciam já estar conquistadas, como liberdade e respeito às mulheres. O fato é que essas pessoas não tinham conhecimento dos inúmeros blogs, sites e canais de vídeos na Internet que vinham preparando o terreno para a ultradireita. Protagonistas raivosos vociferando agressões a todos os seus grandes inimigos, a saber, mulheres, negros, índios, gays e pobres, não por nada, todos que foram protegidos e conscientizados de seu valor por programas e ações afirmativas dos governos de esquerda.

Geopolítica

Se todo o problema do país se resumisse aos preconceitos e ao fato de o Estado existir para estar a serviço de interesses privados, já seria grave o suficiente. Porém, o que envolve o bolsonarismo e a ultradireita no poder é muito maior. Não há como dissociar os acontecimentos brasileiros da geopolítica. Sabemos que a América Latina é para os Estados Unidos o mercado consumidor para os produtos de sua indústria e o fornecedor de recursos minerais e fósseis para seu consumo interno. Sabemos que desde a eleição da esquerda e da escolha pelo multilateralismo econômico, mantendo relações comerciais com a União Europeia, os Estados Unidos e Israel, mas ampliando para a China, Rússia, Índia, África e países árabes, o Brasil passou a ficar na mira dos norte-americanos, o que só piorou com a descoberta de uma das maiores reservas de petróleo no pré-sal brasileiro.

A partir daquele momento, desestruturar o país e eleger um candidato que nos colocasse em posição totalmente submissa aos Estados Unidos, com um projeto econômico voltado ao mercado financeiro, passou a ser a meta. E nada melhor que a ultradireita fascista, unida ao fundamentalismo religioso, para levar adiante um programa de destruição da indústria brasileira, da pesquisa e da soberania nacional.

Para que isso acontecesse, o processo de low fare, uso da justiça com fins partidários, foi colocado em prática no Brasil sob orientação dos Estados Unidos. Com o objetivo aparente de acabar com a corrupção, a força-tarefa da Lava Jato, capitaneada pelo então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, destruíram nossa economia por meio da falência das grandes construtoras, resultando em milhares de desempregados, fim da engenharia nacional e, claro, deixando espaço para que empresas estrangeiras, em especial americanas, passassem a realizar as grandes obras públicas no país. Porém, o alvo principal a ser atingido era a Petrobras, de forma que a empresa fosse privatizada e o Brasil perdesse a soberania sobre seu petróleo.

Educação

Objetivando restringir a resistência e pretendendo que o projeto neoliberal perdurasse, a educação passou a ser um dos primeiros alvos já nos primeiros dias de governo. Em palanque, o candidato Bolsonaro já dizia que o país não precisava de jovens com senso crítico. Depois da posse, o ministro da educação (o segundo em cem dias de governo) disse, entre outros tantos absurdos, que as universidades do Nordeste não deveriam oferecer cursos de filosofia e sociologia. Os nordestinos deveriam se dedicar à agricultura, sob orientação de Israel. Mal sabiam eles da força da cultura do povo nordestino…

Filosofia, arte e cultura, por serem espaços de pensamento livre e de reflexão, foram os setores que primeiro sofreram ataques e desmonte de projetos. Tudo que promova encontro de diversidade é condenado como iniciativa de viés marxista. Nesse sentido, o ensino privado passou a ser priorizado. A escola pública vem sendo cada vez mais sucateada e o ensino em casa para crianças passou a ser incentivado. Isolar as pessoas em suas redomas, e principalmente as crianças, é o caminho para que o “outro” possa ser apresentado como o inimigo, como aquele que não merece atenção e investimento do Estado. A escola pública e diversificada é uma ameaça, pois uma criança branca de classe média que tem contato, em sala de aula, com uma criança negra e pobre em situação de igualdade será um adulto que não aceitará com tamanha facilidade posições racistas. Uma criança branca de classe média que frequente a casa de uma criança pobre e negra, que vivencie a forma como aquelas famílias se organizam, trabalham e lutam para conseguir viver, será um adulto que não aceitará tão facilmente a ideia de que pobre é vagabundo, feio, cheira mal e que deve ser mantido à distância.

A mídia

A política sempre esteve unida às mídias para chegar até a população. Do cartaz ao panfleto, dos jornais às redes sociais, governo e oposição sempre precisaram dos meios de comunicação para difundirem suas ideias. Historicamente, a grande imprensa sempre esteve vinculada ao poder econômico, uma vez que este a financia. Naquele momento ela estava na mão dos bancos e a serviço do mercado financeiro, bem como na mão das igrejas evangélicas pentecostais (aqui fica o registro de respeito aos inúmeros evangélicos que não comungam dessas ideias). Bolsonaro foi eleito por uma classe média “informada” por essa grande imprensa que repetiu vinte e quatro horas por dia o mantra “PT é ladrão” e foi eleito também por uma massa conduzida por pastores evangélicos e suas pautas moralistas. Segundo as pesquisas, os genuinamente reacionários de extrema direita são em número menor. O quarto segmento que elegeu Bolsonaro foi o dos detentores do poder econômico, que viram na figura patética do capitão o personagem útil e facilmente controlável. A história se repetiu. O mesmo foi dito em relação à Hitler e a Mussolini. E, da mesma forma como agiu em 1964, a elite desta terra exuberante apoiou novamente, em 2019, o Exército no poder. O país se colocou sob tutela militar, com a maior parte dos postos-chave do governo sendo controlado por eles. A figura patética que passou a presidir o país se colocava constantemente na iminência de cair e de seu vice, um militar, assumir o governo. O Exército sempre teve papel fundamental na proteção de um país, porém sua lógica de hierarquia e de comando, onde um dá ordens e os demais obedecem, nada tem a ver com política, que é o lugar do contraditório. A Grécia Antiga nos ensinou o valor da política, da troca de ideias, da riqueza que há em ouvir todas as posições e chegar no que seja melhor para a polis. E historicamente os reacionários insistem em depreciar a política com o objetivo único de impor o regime de força e a defesa de seus interesses.

O uso do medo da população

Uma das principais bandeiras da campanha de Bolsonaro foi a de armar a população como forma de aumentar a segurança pública. Outra maneira de, mais uma vez, eliminar o Estado, de tirar deste a responsabilidade de resolver os motivos que levam à insegurança e executar as ações apropriadas para combatê-la. O que o governo disse à população com a liberação das armas foi: virem-se por conta própria, cada um por si. Mais uma insensatez. O ódio foi disseminado, armaram as pessoas e deram aos policiais e ao Exército licença para matar quando estes se sentissem sob pressão. Isso não aumentou a segurança da sociedade, muito menos reduziu a criminalidade. Apenas foram criados marcos judiciais para eliminação de segmentos da sociedade, em especial os jovens negros.

A terra exuberante encontra-se sob um governo que estimula o dissenso, o ódio, o preconceito e principalmente o medo. As ameaças de morte a jornalistas, a escritores, professores e políticos eram lançadas não só por fascistas simpatizantes do Bolsonaro, mas por ele mesmo e por seus filhos através das redes sociais. Foi uma tristeza ouvir depoimentos como o da filósofa e escritora Márcia Tiburi, que saiu do país temendo não só as ameaças à sua vida, mas as agressões físicas por parte do Movimento Brasil Livre (MBL) – agora dissociado do bolsonarismo – que estavam acontecendo nos lançamentos de seus livros. Seus leitores passaram a estar em perigo e ela decidiu partir. O mesmo com o deputado federal Jean Willys, com a antropóloga Débora Diniz e com professores e escritores que se retiraram para o Uruguai e outros países, sem falar de pesquisadores que saíram do Brasil por conta do fim dos investimentos em seus projetos.

Estamos apenas a dez meses deste governo e temos a impressão de que já são anos de terror. Neste momento, os militares estão recolhidos, porém ocupando 2.500 cargos de administração do governo federal, não há pronunciamentos nem do vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, que tantas entrevistas concedia até pouco tempo. Os pronunciamentos do presidente estão cada dia mais absurdos e escatológicos. Não temos ideia se caminhamos para um impeachment ou para o fechamento do regime, mas temos a certeza de que já vivemos sobre um Estado judicial e policial.

Como sobrevivemos?

A tarde caía e já era hora dos irmãos voltarem para casa.

Os dois se olharam e, sem dizer uma palavra, pensaram juntos: como sobrevivemos?

Neste momento, olhando para o barco e para a lagoa, percebendo aquele universo à sua volta e pensando em tudo que já tinham realizado a partir da observação desse entorno, perceberam que ali estava a resposta.

A AMEAÇA FASCISTA NO BRASIL DO SÉCULO XXI

Rosana Almendares

No momento em que a candidatura de Jair Bolsonaro à presidência da república foi anunciada, enquanto me colocava em estado de perplexidade meu irmão profetizava: será o momento dos temas fundadores do pensamento serem retomados. Dito e feito. Diante do espanto em relação ao que está acontecendo na sociedade brasileira pensadores das mais diversas disciplinas têm nos abastecido com reflexões na tentativa de um entendimento deste momento que estamos vivendo.  Procurar entender o fato de que não adianta o argumento de que estamos falando de uma pessoa racista, machista, misógino, homofóbico, pois isso não causa nenhuma alteração na opinião da maior parte de seus eleitores, pois eles também pensam assim, é aterrorizante. Eles encontraram realmente alguém que os representa no que de mais vergonhoso existe no ser humano.

Um desses filósofos é Vladimir Saflate que ao explanar sobre o fascismo lembra que  só através de uma figura cômica, caricata que ninguém leva totalmente a sério, é que um projeto de ultradireita pode colocar em vigor uma pauta impossível de ser aprovada em outras circunstâncias. O projeto econômico de direita-radical pretendido para o Brasil jamais seria aprovado pelo voto se suas pautas fossem claramente apresentadas. A única forma de ser viabilizado é através de uma ruptura democrática, seja através de um golpe explícito, seja através da eleição de uma figura caricata, como Bolsonaro que faz com que propostas de governo absurdas vão passando em meio a declarações fanfarronas. Para isso outra estratégia fundamental é a criação do grande inimigo. Aquele culpado por tudo de ruim que assola a sociedade. O psicanalista Chistian Dunker nos fala muito bem sobre isso e exemplifica, na Alemanha nazista foram os Judeus, na Europa contemporânea são os imigrantes, nos Estados Unidos do período do Marcatismo era a ameaça comunista. O inimigo comum reforça a ideia de fraternidade unindo massas de pessoas em torno de discursos fascistas. Estamos agora diante do grande inimigo: o PT.

Não se pode pensar no que acontece no Brasil sem considerar a geopolítica. Seria infantil não lembrar que a descoberta do pré-sal e as riquezas do subsolo amazônico nos colocam na mira de grandes potências. Fora isso, fica tão claro os diversos acenos que o candidato que não tem condições de participar de debates políticos, apenas concede entrevistas, vai dando no decorrer de sua campanha. Quando diz que “se eleito, índio não terá mais um centímetro de terra” ele está claramente acenando para as mineradoras ligadas ao capital estrangeiro e ruralistas. Da mesma forma quando afirma que ao se eleger retirará o Brasil do Acordo de Paris, que trata de políticas voltadas ao meio ambiente ou quando diz em palanque “vocês terão arma de fogo” armando proprietários de terra para massacre a índios e colonos. Sem falar da indústria armamentista, que por sinal teve alta esta semana na cotação das bolsas. Mas o discurso sínico é de que o porte de armas servirá para proteção das pessoas contra a violência urbana. E quando ele dispara absurdos de baixo calão contra os gays e se agarra ao moralismo  vê-se perfeitamente o aceno à igreja, essa igreja empresa que se alastrou pelo país. Encontro muita lógica nas informações que circulam, de que esses três setores coordenam e financiam a campanha deste candidato, a mineração, os ruralistas e a igreja.

Neste momento decisivo, como é toda a eleição, observo amigos saindo do que seria uma discussão legítima entre diferentes formas democráticas de condução da política de nosso país, e optando por um caminho que a história recente já mostrou seu desdobramento trágico. Isso me espanta e não consigo evitar um sentimento de desolação. Revendo acontecimentos históricos sempre me perguntei como multidões apoiaram discursos fascistas ou permaneceram passivos diante das atrocidades realizadas por tais regimes. Como as pessoas hoje podem aceitar estar na mesma posição daquelas que aceitaram e aplaudiram Mussolini na Itália,  Hitler na Alemanha, Salazar em Portugal,  Pinochet no chile ou o golpe militar no Brasil em 1964. De toda a forma tudo isso parecia pertencer ao passado e que jamais se repetiria, porém hoje vejo com a maior perplexidade tudo acontecendo diante de meus olhos, com avalanches de notícias falsas, com distorções da verdade a ponto do presidente STJ, ministro Dias Toffoli, classificar como “movimento de 1964” e não um golpe o terror acontecido no nosso país, me deixando cada vez mais abismada. Que esse senhor diga isso para as mulheres e homens que foram torturados diante de seus filhos pequenos acrescentando à tortura física o pavor de ver suas crianças presenciando tudo. Sou contrária a qualquer ditadura, de direita ou de esquerda, mas sou capaz de entender multidões em países onde impera a injustiça e a desigualdade social, aplaudirem um salvador que promete condições dignas de vida para a população. Mas como entender multidões aplaudindo um discurso que faz apologia a tortura, ao machismo, ao racismo, a homofobia, a xenofobia, a misoginia, ao desrespeito a índios, a pobres, tudo sem o menor constrangimento, tudo muito escancarado e assustador.

Acreditar que os princípios do fascismo – o nacionalismo, o militarismo e o racismo – irão criar um Estado forte é não olhar para a história. Acreditar que suprimindo as liberdades e o direito de lutar por igualdade, que na visão do fascista são movimentos que atrapalham a aceleração do crescimento econômico, estarão resolvendo os problemas brasileiros é achar que o mundo gira apenas em torno de si mesmo.

Temos o DIREITO de escolher a forma de organização política para nosso país, mas acima de tudo temos a OBRIGAÇÃO, de garantir os princípios democráticos conquistados com muito sofrimento, sangue e luta por nossos antepassados.

ELE NÃO

A QUEM INTERESSA UMA POPULAÇÃO SEM CULTURA?

Recentes notícias deram conta dos baixíssimos  índices de educação no Brasil o que nos faz pensar sobre qual  o interesse da classe política em melhorar a educação no país?

Tomando por exemplo Renan Calheiros, senador eleito pelo estado de Alagoas, fez carreira e fortuna sempre eleito por um dos estados com menor índice de alfabetização, índice que é medido, entre outros aspectos,  por capacidade de ler e COMPREENDER um enunciado simples. Por onde passa o interesse de um político que necessita do voto de pessoas sem a capacidade de interpretar, entender e refletir sobre um texto publicado por veículos de comunicação, na sua maioria na mão destes políticos. Passa longe com certeza.

Educação e cultura não estão separados. Fazem parte do mesmo conjunto de elementos de constituição do cidadão.

A quem interessa educação puramente técnica, excluindo dos currículos cursos de filosofia, sociologia e artes? A quem interessa manter o magistério como uma profissão pouco atrativa de forma que parte significativa de nossas melhores cabeças não sejam atraídas para esta carreira?

Nosso estado necessita de reformas sim. Necessita de reestruturação para que os segmentos fundamentais possam ser melhor atendidos pelo setor público. Resta saber o que é considerado fundamental. Para alguns setores na nossa sociedade a cultura é confundida com distração, entretenimento ou decoração. Outros têm a consciência de sua importância transformadora. Sabendo deste “perigo” lutam sempre pela destruição de aparelhos que visem difundir cultura de forma gratuita para todas as camadas da população. Acreditam que a produção cultural deva ser atribuída ao mercado, a iniciativa privada que saberá fazer com que ela dê lucro com produções de fácil compreensão e de apelo emocional em termos de novelas, programas de auditório e emissoras religiosas. Tudo realizado de forma que não leve a nenhum questionamento. Por aí entende-se bem o desejo de  extinção da fundação Piratini, TVE e FM Cultura que possui programação definida pela qualidade e não pelo mercado.

Uma verdadeira reestruturação de nosso estado passaria por uma discussão séria sobre todos os itens que constituem o pacote do Governador José Ivo Sartori. Mas discutir dá trabalho, exige ARGUMENTAÇÃO, exige bom senso. Muito mais fácil é destruir tudo para mostrar serviço a um governo federal que tem o maior interesse numa população funcional.

Destruir as estruturas de cultura e pesquisa e transformá-las em presídios. É isso  que está sendo imposto ao cidadão gaúcho. Aconselho que reforcem bem a segurança destes prédios, pois a cultura é o que retira o home do estado de barbárie, sem ela …. bom… é melhor que os prédios sejam muito bem reforçados.

Rosana Almendares
Artista visual
Especialista e Cinema e Design pela UNISINOS

O DESENHO QUE FAZ VIAJAR – TEXTO PARA DENISE WICHMANN

O desenho que faz viajar

Por Rosana Almendares[i]

 

Ao chegar no estúdio de Denise Wichmann encontramos um espaço destinado a criação, impregnado pela ideia de pesquisa e experimentação.  Mesmo que tudo que lá esteja já possua qualidade suficiente, nada está parado ou engessado, pelo contrário, o sentimento que nos invade é o de que a responsável por aquele espaço não se acomoda no primeiro êxito, no primeiro resultado que se mostra satisfatório, ela vai além numa sucessão de processos e numa infinidade de “provas de estado”.

Diante de uma mesa com pilhas de impressões de etapas de processo, Denise vai apresentando uma vasta produção que se assenta na paixão pelo desenho e no gosto pela fotografia. Ao ler seu trabalho de conclusão da pós-graduação em Design de Superfície, realizada na FEEVALE, encontro a frase onde se refere à infância: “o desenho me fazia viajar, pois, nele, podia fazer o que quisesse sem nada definir”. E Denise não perdeu essa liberdade.

Sua pesquisa durante a pós partiu de uma coleção de fotografias de tampas de bueiros captadas em Londres numa de suas viagens. A partir destas imagens uma série de desenhos foram desenvolvidos num diálogo entre fotos, papel e canetas que resultaram em linhas livres e grafismos que lembram caligrafias, resignificando totalmente as imagens originais. Na segunda pós, também realizada na FEEVALE, agora em Poéticas Visuais, Denise fotografou durante dois anos a demolição da empresa Otomit, com sede em Novo Hamburgo e que foi a primeira empresa gráfica da região.  Essa pesquisa gerou mais de 5000 fotos realizadas em horários distintos. As práticas durante esse período de estudos resultaram no processo que transita entre a fotografia, o desenho e o retorno a fotografia, ressaltando pequenas partes do todo. Esse jogo entre a imagem digital e o fazer manual acompanha a artista até a produção atual.

A fotografia é uma interpretação do real, é um vestígio, é uma marca deixada. Por maior que seja a interferência do olhar do fotógrafo, no ângulo escolhido ou na construção do conjunto a ser fotografado, ela sempre será o resultado de um processo ótico-eletrônico ou químico. Denise domina completamente esse processo e isso pode ser conferido nas suas fotos de interiores e produtos, mas na produção artística ela parece querer desafiar esses limites, ir além, alcançar algo que as lentes não foram capazes de captar e consegue isso retrabalhando as fotos com canetas e tintas, preferindo o preto e branco e quando a cor por ventura aparecer, ela virá certeira em locais estratégicos.

Se a fotografia pura e simples não basta, a pintura e o desenho também não satisfazem se não passarem pelo ato de serem fotografados. É como se, após fotografar o trabalho original, a artista diante da nova imagem, deixasse de ser a autora e passasse a ser aquela criança que desenhava livremente com autorização para interferir no trabalho, desmembrá-lo, separando e ressaltando detalhes da pintura com o auxílio de pequenas janelas de papel, resultando em partes que podem ser retrabalhadas e fotografadas novamente.

Nesse desmembrar, nesse olhar por outro ângulo, nesse reinterpretar o que já foi feito, Denise vai buscando novos sentidos e provocando em nós, espectadores, a desacomodação que uma imagem provocativa pode causar.

Denise nos convida a viajar…

 

 

[i] Rosana Almendares é artista visual com especialização em Cinema e Design pela UNISINOS

SOLANGE BRINCA COM GRILHÕES - TEXTO PARA SOLANGE CALDAS

Solange Caldas é daquelas artistas que materializa seu pensamento com facilidade e propriedade. Bem por isso sua produção não se limita a um único procedimento ou linguagem. Transitando entre desenho, pintura, colagem e objetos, Solange vai lançando mão de peças encontradas ou descartadas, linhas e tecidos para a realização de seu trabalho. Tudo serve e é bem utilizado para dar materialidade ao seu pensamento.

Essa liberdade que encontramos no processo criativo de Solange é próprio do que entendemos hoje como possibilidades do fazer artístico. Restringir a expressão do artista a uma única linguagem implicaria em não dar vazão a uma vasta gama de recursos, ideias e práticas tão diferentes entre si e tão ricas em significados.  Quando bem articulada pelo artista, e é o caso de Solange, esta diversidade de procedimentos resulta em trabalhos que levam a reflexão e ao deslocamento do lugar de acomodação.

Solange explora diferentes maneiras de criar, faz conexões com elementos heterogêneos, subtrai dos objetos sua função útil para dar-lhes valor de experiência, fazendo com que funcionem de maneira diversa, formando novas composições. Como escreve Cristina Pescuma em Arte como Jogo[i],  (…) não se trata de adaptações ou justaposições , mas de produzir uma diferença de natureza”. Este jogo é marcado principalmente por elementos de repetição em variadas combinações, sempre abertas ao acaso, num exercício contínuo de criação  e de experimentação.

Na série mais recente de trabalhos intitulada “Brincando com grilhões”, Solange traz um conjunto de sapatos femininos de saltos muito altos, carregado de simbolismo e sensualidade. A artista envolve esses sapatos em uma trama que pode ser pensada como amarras femininas. Difícil não fazer relação entre os altíssimos saltos e os espartilhos que torturavam os corpos de mulheres na busca da apresentação de um corpo sensual. Assim como o abandono daquela peça representou um dos primeiros atos de libertação feminina, Solange ironiza os sapatos através das amarras, de enfeites coloridos, fitas ou flores.

Quando a criação artística questiona dogmas, hábitos e o senso comum, quando relativiza certezas e verdades absolutas nos colocando em estado de pensamento,  a arte cumpre seu papel. Nesse momento, o artista e sua obra nos faz sair da percepção consciente, realizar outras conexões e entrar em novas vibrações. Assim é o trabalho de Solange Caldas.

Rosana Almendares Artista Visual Especialista em Cinema e Design pela UNISINOS Novembro-2016

[i] Pescuma, Cristina – Arte Como Jogo – BLADE – 2015

AS MARAVILHAS E OUTRAS HISTÓRIAS.... - ANA FLÁVIA BALDISSEROTTO

As Maravilhas e outras histórias de água, dunas e vento

Ana Flávia Baldisserotto
Mestre em artes visuais, coordenadora
do projeto Histórias Ambulantes.

Eles decidiram viajar. Viajar juntos. Voltar aos lugares onde parte da história familiar fora vivida décadas atrás. Certo dia, seu Air conta aos filhos já adultos a história da formação das Maravilhas, balneário localizado a poucos quilômetros da fronteira sul do país, onde os irmãos Almendares haviam passado os verões de sua infância e juventude nos anos 60 e 70. A escuta deste relato é o embrião do projeto, é ela que coloca o desejo em movimento. Como seria voltar àquela paisagem, olhar para aquele horizonte reto, vasto, e respirar aquele ar novamente? Como seria revisitar aquele cenário outrora tão familiar, hoje um ponto remoto, perdido entre dunas, mar e lagoas, no meio dos areais sem fim?
Partiram, então, a viajar. Viajar com o espírito de retorno, mas também de aventura. Partiram sabendo que em cada canto desta geografia meio esquecida, por vezes difícil, arredia, habitam ruínas quase invisíveis da nossa história. Partiram com olhos e ouvidos bem abertos e o espírito entregue às curvas e caprichos de um tempo mais lento. Um tempo regido pela voz e pelos silêncios de seus interlocutores, ensinado pelas ondulações da lagoa, pelo balançar das embarcações, pelas variações e ritmos do vento. Partiram com a entrega à duração de que se necessita para escutar o outro, e , acima de tudo, com a disposição para ser tocado por aquilo que não sabiam que estava lá, mas ainda assim, desejavam encontrar.
A exploração tem início justamente na Estação Balneária As Maravilhas, tema do primeiro vídeo e livro produzidos por Rosana e Renato. Por muito tempo isolada do restante do país por extensas planícies e intransponíveis alagados das terras do Taim, a cidade de Santa Vitória do Palmar é um dos centros gravitacionais do projeto. O lento processo de abertura das vias de acesso à cidade, por água e por terra, é narrado pelo professor Homero, que vai desvelar o jogo de forças que levou à construção e incipiente utilização do porto da cidade. Na sequência de viagens realizadas pela dupla, a Ilha dos Marinheiros será também um ponto de muitas idas e vindas. Admirada pela tranquilidade com que a vida ali caminha, e, especialmente, pela disposição do povo para conversar sem pressa, a ilha renderá belas histórias e encontros: seu Bolinha, seu Laurindo, dona Lucimar e tantos outros. Em São José do Norte, percebe-se logo, há um reservatório sem fim de relatos em espera. No episódio preparado para este projeto, somos apresentados a seu Octávio, que conta o caso curioso de um alemão espião que aportou de submarino na cidade à época da Segunda Grande Guerra. Já no episódio “A ilha de Feitoria e o povo que se apaixonou” somos convidados por seu Negrinho e seus amigos, a descobrir porque a ilha, que já teve mais de trezentos habitantes, conta hoje com um único morador.
As cinco narrativas em vídeo e os desenhos minuciosos que constituem os livros apresentados nesta exposição, buscam, em sua forma discreta e singela, apresentar-nos às paisagens humana e natural desta região através de fragmentos de memória que ainda pulsam, bem vivos, nos relatos de seus habitantes mais antigos. Nas trilhas destas viagens, nas margens da lagoa, na beira do mar, no pó da estrada, Renato e Rosana resgatam, ao final, não só algo de si, da memória familiar, mas também dimensões da história do Brasil que escapam a todos nós, bem como modos de subjetividade e formas de habitar o tempo, que parecem se encontrar em processo de decomposição e perda. São histórias como essas, “(…)da época em que nem todas as casas tinham rádio pra ouvir o noticiário(…)” – palavras de seu Octávio – que merecem e precisam ser contadas e escutadas. Histórias e lugares que nos restauram um sentido urgente de humanidade e que nos são, aqui, oferecidas por narradores generosos e compartilhadas com delicadeza por Rosana e Renato Almendares. Pequenas maravilhas.

SINGULARIDADE DAS FIGURAS- GILMAR HERMES

A singularidade das figuras – maçãs, cata-ventos, pássaros, animais marinhos e agora cachorros – é o ponto de partida de Rosana Almendares. A partir dos estudos de luz e sombra com o tema da natureza morta, ela adotou a maçã no seu processo de trabalho. Escolheu aquela forma vermelha e redonda e fez poesia com esse pedaço de pecado em um novo contexto. A maçã, como o astro de uma encenação, tomou conta do espaço das telas, como se elas fossem um palco, e anunciou imediatamente sua presença. As pessoas olharam e viram, nas suas maçãs repetidas em diversos quadros, toda a força imaginária desse fruto, que impressiona pela sua inserção na cultura. Esse elemento começou a dialogar com outros – aves, flores, golfinhos e santos missioneiros – que passaram mais tarde a ser também protagonistas.

As maçãs foram multiplicadas e ganharam uma pele que não é só delas. Com uma técnica mista, Rosana elabora tramas, embora o resultado seja mais visual do que da ordem do tato. Lembrando as lições de Alice Brueggemann, Rosana diz que o artista deve valorizar o momento de criação e elaboração de um trabalho. É o resultado dessa preocupação que vai de fato ao encontro do espectador.

Na escolha de uma singularidade, as vivências pessoais e as imagens que circulam publicamente são levadas em conta. Elementos geométricos dialogam com as formas orgânicas, complementando ou contradizendo a vida, o sensível, em sobreposições e transparências. Nas telas grandes, a artista se permite a ser mais gestual e joga com os fundos. Há ainda uma relação mais corporal dos espectadores com essas telas maiores.

Chegou a vez dos cachorros. Eles tomam agora proporções enormes. Os seres humanos aparecem ali como curiosos diante dos seus gigantescos cachorrinhos. Na História da Arte, esses animais amigos já apareceram nos quadros de pintores renascentistas, seja Jan van Eyck ou Velázquez, como símbolos de fidelidade em meio a uma composição com várias figuras. Nos quadros de Rosana, eles são os privilegiados. A humanização da natureza ganha uma certa monumentalidade nesta nova série de quadros.

Gilmar Hermes – 2002

Jornalista e professor de História da Arte da Unisinos

A ARTE DE ROSANA ALMENDARES - VERA LANES

O ser humano em sua constante busca da felicidade, questiona valores, afetos, relações … Deseja qualidade nas suas relações … Neste questionamento surgem a falta de tempo, a competitividade, a comunicação virtual, a globalização, como elementos debilitadores da qualidade nas relações . Esses debilitadores interferem na qualidade da atenção, do cuidado, da manifestação de amizade e companheirismo, na incondicionalidade dos afetos . Nesta busca incessante, o homem encontra no cão aquilo que está se tornando raro nas relações : a disponibilidade, o olhar atento, a alegria nos reencontros, a fidelidade, a ausência de cobrança, o afeto incondicional … Cresce consideravelmente o número de humanos para os quais a relação com seus cães torna-se imprescindível. A solidez desta relação alavanca a indústria de “pets” e movimenta milhões de dólares no mundo inteiro. Cria empregos e gera divisas. Faz amigos. Insere-se em todos os segmentos da sociedade .

Atenta a seu tempo e aos movimentos de sua época, a artista plástica ROSANA ALMENDARES traz à tona , com sua pintura, a importância dos cachorros nesse cenário . De tal forma e com tamanha intensidade eles tornam-se protagonistas em suas telas . São fortes, são sólidos, são vitais, os seus cachorros. Comunicam-se com o espectador em linguagem própria e o seu gigantismo parece revelar a intensidade desse diálogo e o tamanho de sua autenticidade . Falam por si, os cachorros de ROSANA ALMENDARES … Despertam emoções e sentimentos, traduzindo-se de forma imperiosa numa exigência da alma humana – a necessidade de relacionar-se .

VERA LANNES

PORTO ALEGRE , SETEMBRO 2002

DESCARTARTE OU RECICLARTE, EIS A QUESTÃO - DÉCIO PRESSER

Suzane Wonghon e Rosana Almendares consolidaram o talento através da pintura. Desenvolvem carreiras em São Leopoldo, buscando inspiração na figura, mas com visões diferenciadas. A inquietação criativa as colocou lado a lado numa pesquisa lúdica que originou a série de objetos denominados Descartável, Reciclável, Funcional reunidos nesta exposição. O reaproveitamento de embalagens e outros materiais da sociedade de consumo não é novidade. Inúmeros artistas contemporâneos já optaram por esta recriação. Das mais variadas formas, da ironia à diversão, sempre deram origem a trabalhos que se destacam pela originalidade artística dos criadores.
Tudo isso acontece num momento em que a arte enfrenta um impasse. A rapidez da comunicação, os artistas instantâneos, o consumo desenfreado tem proporcionado uma reavaliação do mercado e a falta de perspectivas faz com que se busquem saídas mais adequadas à sociedade contemporânea. Para Suzane e Rosana a pintura deixou o papel principal e passou a ser coadjuvante. Nesta pausa dos pincéis, elas encontraram nos utensílios descartáveis, o material ideal para criar objetos, interrompendo o destino final, o lixo.

Estamos vivenciando o predomínio da superficialidade. Também presenciamos tempos de grandes avanços tecnológicos, mas pagamos o preço por vivermos sob a idéia de que tudo fica obsoleto rapidamente. Perdemos a estima pelas coisas, quebramos a ligação afetiva e sentimental aos objetos e em última instância, às pessoas. Nestas contradições, com as quais precisamos aprender a viver, os objetos descartáveis parecem representar muito bem. Se por um lado não podemos negar as fantásticas conquistas e benefícios alcançados através dos avanços tecnológicos, por outro não podemos fechar os olhos às conseqüências ou aplicações negativas destas conquistas.
Empresas lançam produtos no mercado já sabendo que, dali a alguns meses, haverá uma nova versão mais atualizada. O pensamento está apenas no lucro , deixando o público se levar por modismos e idéias de marketing.

No momento, Rosana trabalha fundamentalmente com as colherinhas e pazinhas de cafezinho. Elas existem em diversos formatos e juntas proporcionam um universo fascinante. Seu objetivo é mostrá-las sob diferentes formas de expressão, ou seja: em painéis de tecido temos a gravura e o desenho; nas caixas temos fotogramas, imagens digitais e assemblage O resultado é um trabalho que nos remete ao concretismo totalmente distanciado da figuração pictórica da artista.. Optando por outra vertente, Suzane utiliza embalagens de papelão de leite para construir um mini-zoo de mamíferos, alusão ao alimento contido nas caixas descartáveis. Aqui a pintura aparece no acabamento, mas a cola é que proporciona forma e durabilidade a estes “animais”. É uma leitura bem humorada que se contrapõe ao geometrismo explorado por Rosana. O resultado é um conjunto que instiga, questiona e diverte, mas totalmente integrado aos preceitos da arte vigente nestes tempos fugazes.
Aqui o descartável não aparece através de um ato, uma performance, uma atitude, e sim sob uma abordagem estética. O ato de tomar um objeto criado com o objetivo de ser descartado imediatamente após o seu uso e inseri-lo em um outro contexto, propõe uma parada no tempo para pensarmos naquilo que é chamado de cultura do descartável. É o lixo que pode virar arte quando manipulado com inteligência e talento.

Decio Presser
Jornalista-Julho 2006

JOGO DO VELHO - FABRÍCIO CARPINEJAR

Rosana Almendares acolchoa as paredes. Tudo o que é descartável vira objeto de arte, orvalho de árvore no portão. Sua exposição é como uma casa andando. Os objetos repetem desenhos, com fundo em preto, branco e cinza. A repetição é ritmo.
A linguagem é ritmo repetido. Tal como o amor que pede a reincidência. Tal como as batidas de um coração que não se enjoa de começar.

São imensos jogos da velha, em que o imprestável torna-se pensamento, o impensável transforma-se em prestável. Talvez um jogo do velho: o que é abandonado pelo consumo volta a reintegrar a sociedade liberto do prazo de validade. O lixo converte-se em observação lírica do cotidiano, caligrafia caprichada. A beleza exubera, harmônica, calculada, como partituras de um músico afixadas na parede. As gavetas abertas derramam justamente a música das formas. O que serão as figuras? Tulipas? Colheres? Fósforos? Tochas? Cotonetes? Pirulitos? Pequenos travesseiros de bonecas? Ou um modo de envelhecer com dignidade?


Fabrício Carpinejar,
poeta – 2005

DESCARTÁVEL - ROSANA ALMENDARES

Na série de trabalhos que intitulei DESCARTÁVEL, tenho explorado a forma, a transparência, a delicadeza e as linhas do objeto que elegi como representante deste tema, ou seja, a colher de cafezinho descartável.

Ao criar desenhos a partir da forma deste objeto, ao fotografar, filmar e manipular digitalmente as imagens resultantes deste processo, descubro outras facetas deste objeto que passa desapercebido no nosso dia-a-dia. Tanta fragilidade numa forma que repetida inúmeras vezes cria imagens intrincadas, semi-transparentes, uma verdadeira trama de linhas sinuosas.

Explorar e descobrir tantas sutilezas e possibilidades desta forma me faz pensar que podemos, e na verdade devemos, parar e refletir sobre o ato de descartar que está tão impregnado no nosso comportamento.

Diariamente uma infinidade de produtos que têm por objetivo facilitar nosso dia a dia , nos são oferecidos. Facilidade, praticidade, eficiência, rapidez e como conseqüência, muito resíduo.
Em nossos atos cotidianos, repetitivos e automáticos, nos desfazemos de tudo o que consideramos descartável. Ao repetir inúmeras vezes a forma da colher de certa forma estou imitando este ato cotidiano, mas crio outras possibilidades que interrompem o destino inevitável de tudo que é descartado – os lixões das cidades.

As conseqüências deste descartar que encaminha toneladas e toneladas diárias de resíduos para estes lixões, não se restringem ao meio ambiente, o que já é desastroso, mas atingem todo um sistema social.

É fundamental então, despertarmos.

É necessário acreditar que existem outros caminhos.

Rosana Almendares
2007

EM SÉRIE - ROSANA ALMENDARES

Os trabalhos ora apresentados sob o título Em Série são uma decorrência da pesquisa que denominei Descartável e que vem sendo desenvolvida nos últimos três anos. Em Descartável o foco era a transitoriedade de certos produtos feitos com objetivo de serem imediatamente descartados, logo após o uso. Ao trabalhar com estes objetos, constatei que estava interrompendo uma linha de tempo muito curta entre sua utilização e descarte. Essa percepção me fez refletir sobre o quanto levamos para nosso modo de vida essa atitude de encarar tudo como facilmente descartável. O quanto não consideramos o resultado desse descartar tanto no meio ambiente quanto nas atitudes com outros seres humanos.

No desenrolar do trabalho fui me atendo à forma dos objetos, principalmente o da colher descartável, utilizando a repetição da mesma, em diferentes composições. Passei então, a observar outros objetos produzidos em série, não exatamente descartáveis, mas, da mesma maneira, transitórios. Objetos que, no desempenho de sua função, não nos chamam a atenção por sua forma, mas pela informação que contém. As etiquetas, agora, fazem parte dos trabalhos. Sobre postas a imagens digitalizadas, sofrem alterações no seu conjunto visual, conforme a maneira como são utilizadas. O foco passa a ser a produção em série, a massificação, a uniformização.
O processo de impressão digital já traz a idéia da produção em série. Reforça a tão propagada questão da reprodutibilidade técnica da obra de arte, em contraponto ao caráter único da mesma, tratado por Walter Benjamin. O processo digital, aqui, não é utilizado apenas para reproduzir a imagem de uma obra original, mas tratado como ferramenta de criação. Revela temas como o da produção em série de objetos de culto, como o trabalho intitulado “Crucifixo para Espelho Retrovisor”, que pensa os conceitos de valor de culto e valor de exposição, numa sociedade massificada. Esses conceitos de transitórios e descartáveis trazem à tona questionamentos que vão muito além das necessidades demandadas. Alertam para o fato da transitoriedade ter se inserido na contemporaneidade, ora como elemento facilitador, ora como elemento descartável e, até mesmo como fator desencadeante da banalização. Se por um lado, facilita, por outro, inconteste, aumenta nossa responsabilidade no sentido de provocar atitudes que façam a diferença para melhor.  Esse trabalho dos “Em Série” pretende, de certa forma, chamar a atenção para situações absolutamente habituais no nosso cotidiano e que, por essa mesma habitualidade, podem se tornar imperceptíveis. Perceber pode ser o início da diferença.

Rosana Almendares
2007

OLHARES E TRANSCENDÊNCIA - MAGNO FERNANDES DOS REIS

Assim de entrada, vemos um jogo de formas identificáveis com alguma realidade visível, mas verossímeis. O olho é a realidade como vem colocada e experimentada pela alma, e a alma, se não abranger e unificar o objeto e o sujeito da experiência, não é total. Mesmo que o mercado de arte insista em anunciar que a figura está completamente banida do universo da arte contemporânea, Rosana Almendares realiza figurativo o espaço, partindo do próprio espaço. O conceito desaparece, dissolvendo-o nos olhos dos cães. A alma do quadro não é conceito. É a poesia do olhar…
Nos trabalhos da artista percebemos a antítese da abstração na figura. No entanto, Almendares parte do cão para deduzir no olhar o conhecimento. Mas esses olhares são simbólicos, abstrações da realidade de nosso tempo. Olhos tristes, alegres e uma vítima: o homem, o medo e a esperança. Almendares reforça o conflito entre a vida e a morte. O olho do cão enquadrado retrata o clima de tensão entre as imagens de violência produzidas pelo homem e a realidade poética omitida em conseqüência da pobreza e da exclusão social, tema dominante no conjunto de trabalhos apresentados. O olho simboliza o sol, a eterna vigilância, a sabedoria e reflete o medo da história. O cão é símbolo da fidelidade e proteção de amor cego e obediência.
Os olhos dos cães são simplesmente pretexto para a artista reinventar um espaço poético que o homem tem recusado a construir. Almendares constrói uma linguagem própria, mágica e extraordinária negando as imagens da televisão. O que são seus cães, de cor suave, e ao mesmo tempo congelados, senão monumentos de uma cidade ideal, uma cidade que recusa a realidade, a psicologia da violência, uma cidade transposta nos olhos dos cães. O grande significado no trabalho de Almendares é o desenho pela técnica refinada que cria um drama feito de ar luminoso filtrado pela luz. Almendares mostra outra face da linguagem e da vida dos habitantes dos centros urbanos. Nos olhos amplia questões sociais, tais como a fome e a violência que se mistura com as faíscas que exclui o ser humano.

Magno Fernandes dos Reis
Jornalista formado pela Universidade Brás Cubas, em São Paulo, pós-graduado em Jornalismo pela FAFI-BH e mestrando em História da Arte pela Universidade Nacional Autônoma do México-UNAM. Possui vários artigos escritos, sobre política e arte. Atualmente é colaborador da Revista Este Sur, de Chiapas – México. Leciona História da Arte no Curso Técnico de Restauração na Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP, filosofia e história contemporânea Faculdade de Filosofia, ciências e Letras do Alto São Francisco e história contemporânea na Faculdade de Jornalismo do Centro Oeste de Minas Gerais- FADOM. É membro do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais e da Associação Brasileira de Críticos de Arte – aica seção Brasil.

OLHARES - GILMAR HERMES

Rosana Almendares criou o hábito de eleger seres/coisas que são, à maneira da arte, ritualizados em suas pinturas. Na superfície da tela enfoca as manifestações da vida e promove assim a admiração em torno delas. Estamos a contemplar a coisa que agora existe como manifestação de um fazer artístico. A figura – como uma linha ou uma mancha colorida – é uma manifestação vital e plástica da realidade.
A artista faz nesta exposição mais um exercício com as figuras de cachorros em grandes telas. Se a escolha anterior da maçã foi feliz, muito mais é a do cachorro. Voltando às primeiras civilizações, é possível ver representações de animais que ganham um sentido desde o início dos tempos, simbolizando valores que se referem aos anseios humanos. Poderia-se encontrar no próprio cão – assim como no gato, no leão, no touro ou nas aves – uma série de sentidos. Contudo, antes de mais nada, o cachorro é Pop. Do ambiente doméstico ele saltou para os filmes e desenhos animados de Holywood e hoje é uma febre da cultura urbana, prometendo companheirismo.
Nem sempre, porém, a humanidade ampara o cachorro, e ele vai ser o cão de rua, o vira-lata, a mercê do que a cidade permite em seus espaços espremidos. Há um lado humano no cão, que sobretudo o seu olhar transparece. Esse animal compartilha do espaço da casa, afetua-se como se fosse um membro da família, mas pode ser abandonado e estar sujeito à crueldade de quem decide o seu destino.
Dentro do seu ateliê, os artistas não se isolam do mundo, e sim reencontram a realidade através do seu fazer. O olhar de Rosana sobre a vida começa com a definição de uma superfície de cor, fria ou quente, clara ou escura. É a primeira manifestação de um sentimento que vai ser revelado através das figuras e sua inserção nas composições.
Sensível à terra pantanosa dos valores globais, Rosana faz com que seus cachorros evoquem o sentimento de fragilidade que todos nós estamos sentindo diante das manifestações de poder dos nossos dias. Seu trabalho reflete o cotidiano, hoje globalizado em função das tecnologias. A possibilidade de ver, ao lado da impossibilidade de agir, nos deixa tão perplexos como os cães diante da arbitrariedade dos seres humanos.

Gilmar Hermes – jornalista e professor de História da Arte na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) – 2003

DESENHOS E PINTURAS SOBRE PAPEL - GILMAR HERMES

Na sua exposição em maio deste ano na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, a artista plástica Rosana Almendares trabalhou com telas de grandes dimensões que, infelizmente, não podem ser expostas no Espaço Cultural/Hemeroteca em função do seu tamanho. Contudo, ao conhecer este local de exposições e ver a possibilidade de mostrar o seu trabalho no Centro de Ciências da Comunicação da Unisinos, ela propôs-se a retomar um aspecto que caracterizou o início de suas pesquisas visuais, o desenho sobre papel. Tendo uma trajetória que foi marcada nas suas últimas mostras pela pintura, o resultado dessa proposta são trabalhos em técnica mista, mesclando o uso de grafite, pastel seco e oleoso, tinta acrílica e colagens. Temos de considerar também que Rosana não se prende somente aos seus processos criativos de uma forma estrita. Há um diálogo com o mundo, quando se vive uma nova crise política internacional, além de uma conversa com a história da arte, mesmo que intuitiva.
Os trabalhos de Rosana têm sido marcados pela escolha de um determinado elemento, a exemplo das maçãs, que estiveram muito presentes em várias séries. Elas aparecem em composições de caráter fortemente abstrato, e trazem por trás de si a tradição da temática da natureza-morta, que é a pintura de objetos inanimados, mas que se vinculam à vida, especialmente quando são flores e frutas, na sua efemeridade. Posteriormente, no lugar das maçãs, surgiram os cachorros, verdadeiros companheiros da solidão urbana. Eles é que levaram Rosana a criar paisagens nesta série de trabalhos apresentados nesta exposição.
Os cenários sombrios que Rosana criou dialogam com a tradição da pintura paisagística, que teve como grande momento o Romantismo. O alemão Caspar David Friedrich evocava o sentimento do sublime com o personagem solitário de sua pintura O Cantor Diante do Mar de Névoa, no momento em que os artistas plásticos assumem o caráter subjetivo de sua atividade e, ao mesmo tempo, emerge intensamente a problemática das relações do indivíduo com a sociedade organizada. Nessas paisagens de Rosana, não há um homem, mas um cachorro.
Do Romantismo, desencadeou-se o Realismo e o Impressionismo, esse último marcado pelas experiências que tratam a percepção do mundo sobretudo como um fenômeno óptico. Cores brilhantes, luminosas, começaram a aparecer nas paisagens. Nesses desenhos de Rosana, predomina o preto-e-branco, é um impressionismo ao contrário. É uma possibilidade de perceber o mundo hoje, como num pesadelo. No estado de consciência do sono, muitas vezes, encontramos a nossa verdade, verdade que se torna coletiva quando é transformada em objeto de arte.

Gilmar Hermes – Jornalista e Professor de História da Arte na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) – 2003
ghermes@yahoo.com

DESENHOS E PINTURAS SOBRE PAPEL - ROSANA ALMENDARES

DESENHOS E PINTURAS SOBRE PAPEL

Por Rosana Almendares

O artista é submetido diariamente, em seu atelier, a uma reflexão sobre seu meio. A cada novo trabalho, a cada experiência, novas reflexões são instigadas tendo como conseqüência novas representações.

Nesta exposição me deixei levar pelo grande prazer de desenhar.

Reencontrei o papel. Senti novamente a reação deste suporte aos materiais que vinha utilizando sobre tela. E esta reação é fantástica. O papel também quer “dar sua opinião”. A cada pincelada ele reage de uma forma diferente e dá-se um diálogo. O diálogo próprio do papel.

Senti nestes trabalhos, a necessidade de representar o meio urbano e assim inseri o cachorro neste meio, como um observador das atitudes humanas e como vítima involuntária dos resultados dos atos do homem.

Nossa evolução tem sido rápida. Os avanços tecnológicos quase não nos dão tempo de desfrutar o que vai sendo inventado, criado e já descartado. Essa rapidez ou pressa parece não deixar espaço para considerações com relação às conseqüências de nossas criações no que diz respeito à natureza e é claro, ao próprio homem. Assim ao mesmo tempo em que maravilhas são criadas logo atrás vêem as proibições na tentativa de recuperar espaços já poluídos, devastados, corpos já contaminados, enfim….

Neste sentido o trabalho intitulado “Proibido?” que faz parte desta mostra, é resultado desta reflexão. Assim como o “FECHADO”, trabalhado em preto, refere-se a espaços urbanos já super lotados e “ABERTO”, trabalhado em branco, evoca espaços amplos e convidativos.

A exposição é composta por onze trabalhos, sendo oito nas dimensões de 50 x 70cm e três 100 x 70cm. Foram utilizados diferentes materiais como grafite, pastel seco e oleoso, nanquim e tinta acrílica sempre sobre papel.