Durante um evento pró-armas, um deputado federal compara professores à traficantes de drogas, dizendo que professores doutrinadores desestabilizam famílias. Sua fala: “Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que tenta sequestrar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior porque ele vai causar discórdia dentro da sua casa, enxergando opressão em todo o tipo de relação”.
Se é uma tristeza saber que um deputado federal é capaz, em discurso público, de proferir tal fala, mais triste ainda é ver pessoas aplaudindo entusiasticamente.
Antes de aplaudir qualquer fala é esperado que façamos, à título de entendimento da situação, perguntas básicas como: em que contexto local, falando de nosso país, esta fala foi proferida? Que evento era? O que estava sendo defendido? Eu entendo profundamente o que está sendo defendido ou ouvi por alto algo que atende meus interesses imediatos? Qual o histórico de quem fala? Quais interesses econômicos estão em jogo? Qual é a visão de mundo de quem fala? E no contexto internacional, como esta fala se coloca? Que interesses estão em jogo? E as perguntas devem seguir infinitamente antes e depois de aplaudirmos qualquer fala, pois essa é a atitude esperada de quem ousa pensar.
Se, respondidas as questões, a pessoa no público aplaude a manifestação, bom, esta é sua visão de mundo e alguém a está defendendo. O problema é quando existe justamente, na referida fala, o interesse de se constituir massas facilmente manipuláveis.
A teoria da doutrinação nas escolas fez parte e continua fazendo, como atesta o deputado, do discurso da extrema direita. O que são professores doutrinadores na fala do referido deputado, que despreza e ataca educadores como Paulo Freire, por exemplo. A abordagem de Paulo Freire defende um ensino que promova o pensamento questionador, defende um ensino onde professores e alunos aprendam juntos, onde as diferenças regionais, principalmente num país múltiplo e das dimensões do nosso, sejam levadas em consideração, um ensino que promova no aluno a consciência de classe, de si próprio e do mundo que o rodeia. Isso é ser doutrinador?
Por outro lado, como diz o professor de história Gustavo Nalva, não estará sendo doutrinador o professor que é formado ou orientado para ensinar uma história que justifica a dominação de outros povos a partir da opressão, que tem que ensinar que não há história fora do recorte eurocêntrico, que ocultam que os povos nativos da América, da África, da Ásia e Oceania também tinham sua própria concepção de tempo e evolução do universo e que isso foi apagado e destruído, que tem que ensinar uma história onde está incutido um discurso político que visa manter as classes sociais do jeito que elas são, gerar indivíduos sem consciência de classe e qualquer perspectiva de mudança? Não estará sendo doutrinador o professor inserido num sistema cujo único objetivo é gerar mão de obra barata e não qualificada?
Também não será doutrinadora a abordagem que prioriza o respeito absoluto à hierarquia? Hierarquias são necessárias para organização até mesmo do convívio social, porém o respeito sego á hierarquias já mostrou inúmeras vezes no que dá. O grande exemplo, na história da humanidade, do cidadão competente e cumpridor de ordens e respeitador de hierarquias burocráticas é Otto Adolf Eichmann que durante seu julgamento em Jerusalém, em 1960, acusado de crimes contra a humanidade por sua atuação durante o regime nazista de Hitler, na Alemahã (1933-1945), dizia não entender o motivo de estar sendo julgado. Não se sentia responsável pelos crimes cometidos visto que ele apenas cumpria seu trabalho e de forma muito competente, atingindo metas ao sistematizar o envio de pessoas para deportação e morte nas câmaras de gás. Ele apenas cumpria ordens. A análise deste evento pela filósofa Hannah Arendt resultou no grande estudo intitulado “A Banalidade do Mal”.
Trazendo a discussão para o campo das artes visuais vemos como essa área do conhecimento é perseguida, desvalorizada e manipulada quando regimes conservadores e autoritários estão no poder. Alguém poderia dizer: mas na ditadura militar, no Brasil, o ensino de artes passou a ser obrigatório. Sim. Com o intuito de dar um caráter humanitário ao regime. E a forma como foi tratado, visando sua desvalorização, resultou na ideia de que o horário das artes é o de descanso das “aulas sérias”, lazer, hora de decorar a sala e tantas outras ideias que desconsideram sua importância.
Na arte educação, o aspecto libertador que torna esse campo tão temido nos é bem apresentado por um dos maiores nomes da área, Ana Mae Barbosa, que já parte da ideia de que arte não se ensina uma vez que o educador não transmite esse conhecimento e sim provoca experiências que possibilitam infinitas relações entre o fazer e o pensar. Na “Abordagem Triangular”, proposta de Ana Mae para educação em arte, o educador vai além da busca pela expressão de cada aluno que é fundamental, claro, porém trabalhar com a criança ou adulto apenas esta dimensão é limitador do potencial que o conhecimento e prática do fazer artístico possuem para o desenvolvimento dos conhecimentos mentais que serão aplicados em todas as áreas da produção humana.
A Abordagem Triangular envolve o conhecimento histórico, ou seja, a contextualização da produção artística e dos movimentos de arte a serem estudados, o fazer arte, onde está a expressão e o apreciar a obra que implica no saber ler uma imagem. Quando aprendemos a ler uma imagem, deixamos de ser o espectador que aceita passivamente o valor, credibilidade ou intencionalidade desta, definido por qualquer instituição, meio de comunicação ou discurso. Deixamos de ser o espectador passivo que aplaude sem pensar.
A prática e o pensamento nas artes visuais, dança, teatro e música, liberam o ser para imaginar um futuro ainda não vivido, conceber novas maneiras de estar no mundo, novas formas de convivência e bem por isso são áreas do conhecimento tão temidas por conservadores, assim como filosofia, sociologia, antropologia, história e toda a área das ciências humanas.
Vivemos em tempos de crise da democracia e soluções simplistas e binárias são altamente sedutoras e surgem por todos os lados. Temos que saber distinguir as falas e optar, na minha opinião, por aquelas que levam a evolução do processo civilizatório ou que vislumbrem outra forma ainda não pensada de estar no mundo. Ainda na minha opinião, só não podemos regredir acreditando que a solução está nas armas e nas guerras e que a existência é um direito apenas do mais forte.