Em 25 de novembro de 1958 o dramaturgo Eugène Ionesco fez a primeira apresentação ao público da peça O rinoceronte, lendo apenas o terceiro ato para uma plateia no Vieux-Colombier, em Paris, não sem antes dar um alerta dizendo: “a peça é para ser representada, e não lida. Se eu fosse os senhores, não teria vindo”. Porém posso afirmar que mesmo quem só tenha tido a oportunidade de aproximação através do texto já é profundamente tocado e transformado por esta obra.
Meu contato foi tardio, coisa de dez ou quinze anos atrás e fiquei impressionada com o paralelo que podia ser feito com o que já se percebia no Brasil. Era o avanço de algo que envolvia o elogio ao pensamento raso, ao individualismo, ao grotesco e violento, acompanhado pela depreciação de tudo que estivesse relacionado à busca pela compreensão, pelo entendimento e conhecimento amplo e profundo dos fatos. Envolvia a preferência pela resposta fácil, simplista e fanfarrona, emoldurada pela super valorização da aparência, da vida transformada em selfies, imagens vazias geradoras de visualizações que passavam a definir a relevância daquele “avatar”, independente do que ele tinha a dizer – e normalmente não tinha e ainda não tem nada a dizer.
Em O Rinoceronte, o personagem Bérenger e seu amigo Jean, numa manhã de domingo, são surpreendidos com a visão de um ou dois rinocerontes em disparada pela rua principal da cidade. A princípio ninguém dá muita importância desde que os grandes animais não provocassem interferência significativa na rotina local. Porém com o tempo mais e mais rinocerontes aparecem causando pânico com movimentações de enorme alvoroço e extrema violência. Os personagens principais constatam então, que são os próprios moradores que estão se transformando.
Os argumentos usados pelos personagens que não resistiam à nova tendência, foram comparados pelo público alemão, quando a peça foi levada à Düsseldorf, como os mesmos utilizados por aqueles que não resistiram a tentação de Hitler. Alguns optavam pela existência paquidérmica porque admiravam a força bruta e a simplicidade que nasce da supressão dos sentimentos humanos refinados; outros buscavam entender seu raciocínio e acreditavam que só a experiência como tal lhes traria a compreensão; alguns acreditavam que deviam acompanhar a opção de patrões e familiares pela transformação e outros ainda, simplesmente não suportavam a ideia de serem diferentes da maioria.
Dizem que O Rinoceronte representa o sentimento de Ionesco antes de deixar a Romênia (sua terra natal) em 1938, quando um número cada vez maior de seus conhecidos aderia ao movimento fascista da Guarda de Ferro. Como disse ele próprio:
Como sempre, voltei às minhas obsessões pessoais. Lembrei-me de que no curso de minha vida tenho ficado muito impressionado pelo que podemos chamar de corrente de opinião, sua rápida evolução, seu poder de contágio, que é o mesmo de uma epidemia de verdade. Repentinamente as pessoas se deixam invadir por uma nova religião, uma nova doutrina, um novo fanatismo… Em tais momentos testemunhamos uma verdadeira mutação mental. Não sei se já notaram, mas quando as pessoas não compartilham mais as nossas opiniões, quando não conseguimos mais nos fazer compreender por elas, temos a impressão de estarmos vendo monstros – rinocerontes, por exemplo. Ficam com essa mesma mistura de candura e ferocidade, e se tornam capazes de nos matar com a consciência tranquila. E a história demonstrou que no último quarto de século as pessoas assim transformadas não só parecem rinocerontes, mas realmente transformaram-se em rinocerontes.
No final de O Rinoceronte apenas Bérenger restou como humano e ele então, passa a ser o monstro e lamenta amargamente não conseguir se transformar em rinoceronte. É aí que a peça vai além da simplificação mostrando a complexidade da condição humana.
Fonte: O Teatro do absurdo – Martin Esslin – Zahar
*Eugène Ionesco, um dos maiores dramaturgos do teatro do absurdo, nasceu em Slatina, na Romênia, a 26 de novembro de 1912. Sua mãe, Thérèse Icard, era francesa e pouco depois de seu nascimento mudaram-se para Paris. No princípio da adolescência regressou à Romênia, onde se formou como professor de francês. Regressou à França em 1938 para concluir a sua tese de doutoramento. Apanhado pela eclosão da guerra, em 1939, Ionesco permaneceu na França.