Em 1933 Geoge Grosz criava a aquarela intitulada “A BESTIALIDADE AVANÇA” que anunciava a ascensão do nazismo numa Alemanha fragilizada econômica e politicamente, desde o fim da Primeira Grande Guerra.
Ainda em 1918 a liderança militar alemã, autocrática e conservadora, percebendo que estava prestes a perder a guerra apoiou a constituição de um governo civil, jogando no colo dos democratas a difícil negociação da derrota. Os termos do tratado de paz, o Tratado de Versalhes, considerado pelos alemães como uma imposição, limitavam qualquer possibilidade de restauração econômica do país devido às reparações de guerra, restrições à indústria e demais disposições limitantes. Além das dificuldades econômicas e a desmoralização da derrota, o retorno dos soldados das frentes de guerra, doentes e psicologicamente abalados, aumentava no tecido social o clima de fracasso e descontentamento, assim como o saudosismo de uma nação outrora poderosa, a nação dos tempos do imperador. Estava assim criado o terreno fértil para Adolf Hitler se colocar como aquele que supostamente resgataria a glória do passado imperial levando o povo a apoiar e até clamar, por mais bizarro que seja algo assim, uma ditadura, um regime totalitário que perseguia seus opositores. Estava implantado o nazismo, movimento antissemita, ancorado em ideais nacionalistas e de superioridade da raça ariana sobre as demais. Um regime que pregava a eliminação de todos considerados “fora da normalidade” e prejudiciais à perfeição da raça ariana, ou seja, doentes mentais, homossexuais, ciganos, oponentes do regime e claro, o povo judeu.
Esse intervalo entre o final da Primeira Guerra e a ascensão do nazismo, período da República de Weimar (1919-1933), mesmo com todas as dificuldades da Alemanha do pós-guerra, foi um período de grande ativismo cultural. Um dos movimentos artísticos era o chamado Grupo Nova Objetividade, que trazia uma renovação do expressionismo dos dois principais movimentos anteriores – A Ponte e O Cavaleiro Azul. Os expressionistas que lidavam com a subjetividade, com os impulsos e com as paixões, fazendo crítica social e tocando em dramas psicológicos, com a Nova Objetividade passaram a abordar com maior ênfase ainda, a crítica social, os temas da hipócrita burguesia alemã, os horrores da guerra e os socialmente rejeitados.
Com Hitler chegando ao poder em 1933 não demorou a se constituir o processo de silenciamento desses artistas e a substituição da arte crítica por uma oficial de elogio ao regime. Passaram a realizar fechamentos de exposições com ação policial e ataques, verbais e físicos, contra artistas e associações culturais. Em paralelo é iniciado um processo de massificação de ideias através da publicação de ensaios, como os de Alfred Rosenberg, relacionando a subjetividade e a estética dos modernistas ao desequilíbrio e a alienação. Em 1929, Rosemberg funda a Liga de Combate pela Cultura Germânica a partir da qual nazistas desqualificavam a arte expressionista equiparando-a ao conceito de degenerada.
O maior acontecimento contra o modernismo foi a exposição intitulada justamente “Arte Degenerada”, inaugurada em 1937. Cerca de 650 obras foram expostas dentre as milhares apreendidas pelo regime. Como recurso de desmoralização, os trabalhos eram descuidadamente arrumados para aumentar a estranheza e desagrado que deveriam transmitir ao público. Entre obras de artistas consagrados foram colocadas as produções de doentes mentais internados em hospitais da Alemanha. Em paralelo foi inaugurada com grande pompa e destaque, a exposição “Grande Arte Alemã” para que o povo pudesse comparar a arte “degenerada” com a que oficialmente representava o ideal de força e de pureza da raça alemã.
A exposição “Arte Degenerada”, que circulou pelo país com o intuito de “purificar” galerias e museus, definindo mais de 100 artistas que deveriam ser banidos dos acervos, como Pablo Picasso, por exemplo, teve uma visitação de dois milhões de pessoas contra as 420 mil da mostra oficial. A exposição contava simplesmente com as obras de ninguém menos que Herbert Bayer, Max Beckmann, Marc Chagall, Lasar Segall, Otto Dix, Wassily Kandinsky, Franz Marc, Georg Munch, Emil Nolde, El Lissitzky, Paul Klee, Max Ernst, Piet Mondrian e George Grosz, entre outros. Durante o regime nazista professores, artistas e curadores que se identificavam com formas de arte não aprovadas pelo governo foram perseguidos, impedidos de trabalhar e de exporem suas obras, isso quando não expulsos do país, presos ou assassinados.
Fascismo e Nazifascismo são altamente sedutores. Palavras como heroísmo, nacionalismo, patriotismo ou ideias de superioridade racial são sedutoras uma vez que proporcionam uma justificativa para sentimentos racistas, homofóbicos machistas encrustados em sociedades colonizadoras ou de origem escravocrata como a nossa. Não por nada um dos seis secretários da cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em discurso com toda estética nazista de Joseph Goebbels (ministro da propaganda da Alemanha nazista), evoca uma arte heroica e nacional, isso “ou então não será nada”, disse o secretário.
Para manter uma massa de apoiadores o regime, autoritário e excludente, cria o grande inimigo, na época o povo judeu, taxado como ladrão, corrupto e responsável por todos os males que afligiam a Alemanha, contra o qual todos deveriam se unir para salvar o país. Mas não só isso (como se fosse pouco), é necessário também um sentimento de catástrofe eminente, algo que nunca fica muito claro, algo terrível que está por acontecer e apenas o mito, ou, na época o Führer, seria capaz de salvá-los. Para viabilizar o projeto uma grande e bem elaborada estratégia de comunicação também foi essencial para que o povo aceitasse e aclamasse Hitler como o grande Führer.
Assim como em tantos outros momentos na história, esses últimos quatro anos nos fizeram lembrar ou confirmar que a ideia evolucionista de avanço da sociedade, tendo a certeza de que rumamos de forma destinada a um progresso, a um ser humano melhor, a um processo civilizatório sempre crescente, é de uma ingenuidade tremenda. Nada está garantido. O autoritarismo e a bestialidade estão sempre presentes em estado latete. O retrocesso, o retorno a barbárie está sempre batendo nossa porta. E bem por isso é necessário estarmos constantemente atentos.
Voltando para a aquarela de Grosz, se hoje quiséssemos criar algumas com o título “O Retrato Patético da Bestialidade” não faltariam inspirações nas manifestações bizarras que andamos assistindo nas rodovias e em frente aos quarteis militares, realizadas por quem esquece que protestos que pedem a intervenção militar atacam a própria Constituição e não estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão, ao contrário, constituem crime previsto em lei.
Esta configuração da sociedade não muda de um dia para outro. É necessário um entendimento profundo das causas que possibilitam o terreno fértil para o crescimento da extrema direita e, na mesma medida, o entendimento dos métodos de comunicação de massa que estão sendo utilizados. O contexto é complexo e não cabem respostas simplistas.
Que voltem os bons ares da reconciliação nacional;
Que o sentido da linguagem seja restabelecido;
Que voltemos aos patamares da civilização, da democracia e do pensamento crítico.