1964 – Golpe militar no Brasil

1964 – Hélio Oiticica sobe o Morro da Mangueira

 

Nada pode afrontar mais um regime autoritário do que um ser livre, imaginativo, transgressor. Um ser que celebra a alegria, que desloca, que debocha, que desacomoda, que altera uma atitude passiva diante do mundo para uma outra perspectiva de um participante ativo, pensante, criador, que rompe com hierarquias.

 

Oiticica, junto com Lygia Clarck, Lydia Pape, Neville d’Almeida, Waly Salomão e tantos outros, e em todos os segmentos como teatro, cinema, música, naquele momento (particularmente 1965 – 1968), viam como necessidade pensar a produção cultural de forma a unir experimentação com a possibilidade de realizar uma arte participante visando assim, alcançar uma outra ordem do simbólico, afrontando não só o autoritarismo militar que tomara conta do país, mas todo o tipo de repressão e conservadorismo. Oiticica e posteriormente os integrantes da Tropicália, tomaram um caminho diverso dos demais artistas que resistiam à ditadura com uma crítica direta ou dissimulada para driblar a censura visando, de certa forma, educar o povo. A Tropicália não. Ela buscava mais aprender com o povo do que educa-lo sendo, bem por isso, muitas vezes tomados por alienados, o que consiste numa falta de entendimento da profundidade das propostas. Oiticica tinha consciência, por exemplo, da força e da simbologia da atitude irreverente de um passista de escola de samba. Segundo Hélio: “não pregamos pensamentos abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos […]. No Brasil, […] hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social […]. Da Adversidade Vivemos”.

O autoritarismo (e nos nossos dias atrelado ao neoliberalismo) necessita do individualismo para lograr sucesso em seus objetivos. É nesse sentido que torna-se revolucionária toda a proposta de participação coletiva com proposições abertas ao exercício imaginativo, onde a arte é tida como uma intervenção cultural e o artista como motivador para a criação. O essencial das proposições de Hélio Oiticica é a confrontação dos participantes com as situações, concentrando o interesse nos comportamentos, na ampliação da consciência, na liberação da fantasia, na renovação da sensibilidade, no deslocamento dos participantes de seu lugar comum.

 

Toda a experimentação de Oiticica compõe um programa coerente que problematiza a situação brasileira e até mesmo internacional da criação naquele momento. Seu processo se dá através de um fluxo contínuo entre escrita e experimentação, entre reflexão e prática. A tendência básica do seu programa é a transformação da arte em outra coisa: “em exercícios para um comportamento”, operados pela participação.

Oiticica inicia muito cedo sua trajetória como artista. Jovem, ainda na casa dos 18 anos, já expõe com o Grupo Frente, marco histórico do movimento construtivo no Brasil. Nesse momento Oiticica investigava o espaço dentro da tela apresentando os Metaesquemas (1956-1958), trabalhos onde o espectador ainda era mantido no lugar de observador passivo. Como integrante do movimento neoconcreto, no final da década de 1950, Hélio inventa novas estruturas que convidam o corpo a circular seus Bilaterais (1959) e Relevos Espaciais (1959). Em Penetráveis (1960) o corpo é convidado a entrar e interagir com a obra. Logo viriam os Bólides (1963) que como transobjetos se transformavam nas mãos dos visitantes.

 

Percebemos nessa cronologia o desejo de libertar a cor. Oiticica vai colocando em prática esse desejo a partir dos experimentos que envolvem reflexão entre pintura e fundo,  a saída da cor para o espaço, até ela ganhar o corpo, o ritmo e o tempo nos Parangolés de 1964. Estando em contato com a escola de samba da Mangueira e vivendo no morro, Oiticica não mostra a realidade social brasileira como fazia naquele momento, por exemplo, o cinema novo. Ele leva para a instituição de arte o morador da favela vestindo seus Parangolés, isso em 1965 no MAM do Rio de Janeiro na mostra Opinião 65. O título da mostra é derivado do histórico show Opinião, dirigido por Augusto Boal, que estreou alguns meses antes, em dezembro de 1964, e se tornou referência da música de protesto. O show tinha no elenco Nara Leão (depois substituída por Maria Bethania), Zé Kéti e João do Vale, e textos de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Ponte, com alto teor político e foi produzido pelo Teatro de Arena e por integrantes do Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, que já tinha sido posta na ilegalidade pela ditadura.

Hélio Oiticica – Metaesquema Nº 4066. 1958

Hélio Oiticica – Bilateral

Hélio Oiticica com Bólide B33 Caixa 18 -Homenagem a Cara de Cavalo -1965-1966 crédito: Claudio Oiticica

Hélio Oiticica – Parangolé- Opinião65 – Foto: Desdémone Bardin

A mostra no MAM foi organizada pelo marchand, galerista e grande colecionador de arte Jean Boghici em parceria com Ceres Franco, crítica de arte e galerista em Paris, reunindo 29 artistas brasileiros e europeus. Entre os brasileiros, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Flávio Império, Hélio Oiticica, José Roberto Aguilar e Carlos Vergara. Entre os europeus, Juan Genovés, Roy Adzak, Alain Jacquet e Gérard Tisserand. Oiticica levou mestre-sala, porta-bandeira, percussionistas e passistas da escola de samba Mangueira para mostrarem os Parangolés, mas foram impedidos pela direção de se apresentarem no interior do museu. Conta Carlos Vergara: “Meu querido Hélio estava de mangueirense, como passista, com os outros colegas dele, com sambistas, com gente da bateria, e eles foram proibidos de entrar”…”Hélio ficou mais triste do que bravo”. Nada diferente do que acontece hoje com a aversão das camadas mais altas da sociedade em ver pobre em aeroporto ou nos bancos da universidade. Uma coisa é assistir a realidade brasileira, outra é estar ao lado dela.

Os experimentos se seguiram e em 1969 Oiticica apresenta o Édem, um ambiente povoado por bólides e penetráveis onde o espectador integra a obra e é parte do campus experimental elaborando as próprias sensações. Em Tropicália (1967) a proposta é a de deslocamento do participante que se vê imerso em diferentes sensações ativado a partir de um labirinto composto de sala multimídia, construções baseadas na arquitetura das favelas, tecidos, areia numa profusão de imagens que se acumulam até final do percurso.

Em Cosmococas (1973) realizado com o cineasta Neville d’Almeida, uma série de ambientes compostos por filmes montados a partir de slides realizados por Oiticica e que compõe diferentes ambientes multissensoriais onde as pessoas são convidadas a relaxar em almofadas, colchonetes ou redes estando no centro da experiência. Nos slides feitos por Hélio aparecem, entre parangolés e outras imagens, capas de discos, jornal ou de livros sobre as quais se veem desenhos que foram traçados com cocaína por Neville. Hélio deixou por escrito instruções para a realização tanto de performances públicas quanto de performances privadas dessas proposições, com algumas variações entre elas.

 

Oiticica rompeu com as práticas de resistência em desenvolvimento no país. Suas experimentações, através da transmutação da arte em comportamento, libertaram possibilidades reprimidas e manifestaram o poder da transgressão.

Fonte:

 https://mam.rio/historia/parangole-em-opiniao-65/

Inconformismo estético , Inconformismo social – Celso Favaretto – em A arte de Hélio Oiticica, Organização: Paula Braga- Editora Perspectiva

Hélio Oiticica – Tropicália – Mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no MAM do Rio de Janeiro – 1967

Hélio Oiticica e Neville d’Almeida – Cosmococa – 1973