Até meados do mês passado eu tinha como certo que o tema desta coluna seria o centenário da Semana de Arte Moderna. Escolhi para leitura um livro que já habitava minha modesta biblioteca há algum tempo. Um livro lindo do ponto de vista gráfico, com uma capa maravilhosa e que eu sabia estar recheado de fotografias de época. Comento aqui uma mania: não olho as fotos de um livro de forma antecipada, nem uma espiadinha, fico segurando o desejo. Quero que o texto seja acrescido da imagem na hora certa. E hora certa foi também a deste livro sair da prateleira e me acompanhar por uns dias. Trata-se de Eu sou trezentos – Mário de Andrade vida e obra, de Eduardo Jardim.

 

Com os últimos acontecimentos, tudo ficou em suspenso.

 

A guerra tem o poder de suspensão. Um turbilhão de acontecimentos é disparado e ninguém tem mais a mínima noção do que pode vir a ocorrer.

 

A história da nossa presença neste planeta é atravessada por guerras e enquanto isso prevalecer não seremos dignos de usar a palavra humanidade para referir a nós mesmos.

As motivações para os conflitos continuam os mesmos, poder e interesses econômicos, só que a partir de um determinado momento passaram a se revestir da ideia de grandes potências levando a democracia e a liberdade para povos oprimidos ou primitivos. O que vemos como resultado são cidades devastadas, culturas destruídas, civis mortos, mulheres estupradas, horrores inimagináveis para quem não está diretamente envolvido. Com os meios tecnológicos passamos a ter notícias imediatas dos diversos conflitos espalhados pelo mundo. Assistimos bem acomodados em nossos sofás, os horrores pelos quais passaram as populações no Irã, Iraque ou Líbia, entre tantos outros. Olhamos tudo como se assistíssemos a um filme dirigido por um ocidental. Nos telejornais, entre a notícia do tempo e a da próxima rodada da Copa Libertadores da América, vemos horrorizados algumas imagens da bestialidade, pois qualquer guerra foi, é e sempre será a imagem da bestialidade. Assistimos às cenas, trocamos um comentário rápido sobre como o ser humano é capaz de algo assim e prontamente voltamos ao que interessa, seja o jantar, a novela, os compromissos do próximo dia, a lista de compras, as contas a serem pagas ….

Agora está diferente. Será por se tratar da Europa? Será por ter a Rússia envolvida? Sim aquela que habitou nosso imaginário infantil e juvenil, para os que já estão na casa dos 60 como eu, no lugar do temido e apavorante vilão, o personagem feio, muitas vezes sujo e sempre traiçoeiro em todos os filmes da “Sessão da Tarde”. Das comédias aos dramas, de Jeannie é um Gênio à Viagens ao Fundo do Mar, sem esquecer dos vilões russos derrotados por James Bond em 007.

Calma.

Não estou minimizando nem justificando a invasão militar dos Russos à Ucrânia. É um momento terrível da nossa história. Guerra é a imagem da bestialidade. Guerra é o fracasso da civilização. Guerra é a barbárie.

Só estou tentando entender como de uma hora para outra diante de imagens terríveis, mas não mais terríveis do que aquelas citadas no início deste texto, lá no Irã, Iraque ou Líbia, como diante destas agora, cada espectador passou a ter uma narrativa profundamente comovida, definitiva e até feroz sobre os fatos. Entendo que  estamos diante da possibilidade de um confronto mundial e isso pode nos afetar diretamente. Já não é algo distante, e aí vemos como estamos longe da ideia de humanidade (outros dirão: isso é a humanidade. O contrário disso é construção, é elaboração muito trabalhosa. A barbárie é o caminho fácil). Mas entendo também que nesta história não cabe a visão do grande vilão, nem tão pouco a do coitadinho e indefeso. Tudo é muito complexo e fundamental para os rumos da organização mundial. Esse enredo seguramente é composto por muitos vilões e quem sofre é a população.

Percebi que mais que possível, é necessário falar de arte neste momento. Através da arte, da cultura em geral, podemos rever as reações e respostas aos grandes conflitos que povoaram nossa história. Em se tratando da Semana de Arte Moderna a maior parte dos artistas que participaram da exposição de 1922 presenciaram as duas grandes guerras. Viveram aqui no país as contradições do governo de Getúlio Vargas. Mario de Andrade, por exemplo,  apoiou Getúlio  no primeiro momento e sofreu a decepção do Estado Novo, as perseguições e sua destituição do cargo de diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo vendo, a seguir, seu trabalho no sentido de democratização da arte ser destruído.

Na Europa os horrores da primeira grande guerra (1914-1918) levaram um grupo de artistas a criar um dos movimentos de vanguarda mais radicais chamado Dada. A Europa que até então ocupava o posto de ápice do  processo civilizatório passou a ser tomada por outras compreensões. A violência, a destruição e as milhares de vidas perdidas, provocaram a desilusão e reações diversas, entre elas a criação do movimento Dada que rompeu inclusive com a própria arte. Tinham como característica a busca do caos e da desordem, trabalhavam a irracionalidade e o ilógico, eram irônicos, radicais, destrutivos, agressivos e pessimistas. Tinham aversão à guerra e aos valores burgueses, criticavam o consumismo e o capitalismo.

Aqui no Brasil, no período entre guerras, os integrantes do Movimento Modernista tinham como objetivo montar um ambicioso programa de modernização das artes. Mario de Andrade dizia que para integrar a arte brasileira ao ambiente internacional de nada adiantava copiar os modelos franceses. Tal atitude resultaria em soluções artificiais. Era necessário que a arte brasileira adquirisse voz própria, só assim teria condições de comparecer no cenário moderno internacional.

Com o amadurecimento do movimento percebeu-se que não se tratava de ver o país como cenário das obras dos nossos artistas, mas de efetivamente pensar e falar de forma brasileira.

Participaram da Semana de Arte Moderna:

Pintores- Anita Malfatti, Antonio Paim Vieira, Emiliano Di Cavalcanti, Ferrignac, John Graz, Vicente do Rego Monteiro, Yan de Almeida Prado, Zina Aita.

Escultores- Wilhelm Haarberg, Hildegardo Leão Velloso, Victor Brecheret.

Arquitetos- Antonio Moya, Georg Przyrembel.

Escritores- Afonso Schmidt, Agenor Barbosa, Álvaro Moreyra, Elysio de Carvalho, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Luiz Aranha, Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Sérgio Millet, Tácito de Almeida.

Músicos- Alfredo Gomes, Ernani Braga, Fructuoso Viana, Guiomar Novais, Heitor Villa-Lobos, Lucília Guimarães, Paulina de Ambrósio.

Vale lembrar, que bem antes de 1922, artistas já vinham antecipando o que seriam as reivindicações dos integrantes da Semana de Arte Moderna no tocante à temática nacional. Almeida Júnior (1850-1899) foi um dos pioneiros. O artista com forte formação acadêmica era reconhecido e muito bem aceito pela burguesia que adquiria seus trabalhos. Ele recebe um prêmio de viagem à Europa (um segundo, pois o primeiro ele rejeitou), aprofunda sua formação e ao retornar realiza as obras que assegurariam o seu lugar na arte brasileira. São os trabalhos de temática caipira que foram muito bem aceitos inclusive pela burguesia.  

A temática do trabalhador já aparecia na obra de Arthur Timóteo da Costa (1882 – 1922), assim como uma pintura que abandonava a linha do desenho apresentando uma pincelada solta e expressiva. Cito apenas estes dois exemplos entre tantos homens e mulheres artistas, para afirmar que a Semana de Arte Moderna não significou uma mudança abrupta na arte brasileira. Existiu um processo. A Semana significou o evento que mostrou aos artistas que vinham trabalhando isoladamente, a possibilidade de realização de ações conjuntas. Os modernistas acreditavam no poder social da arte. Lutavam contra o individualismo condenando a arte que visava mais enaltecer o artista do que a obra em si. Neste espírito foram lançadas muitas revistas como Klaxon, Revista de Antropofagia e Terra Roxa e Outras Terras.

Lasar Segall foi um artista que teve sua temática fortemente impactada pelo poder destruidor das guerras.

Nascido na Lituânia em 1889 e de origem judaica, inicia seus estudos em 1905 na Academia de Desenho. Em 1906 transfere-se para a Alemanha ampliando seus estudos e o contato com o impressionismo. Tem uma passagem pelo Brasil em 1912 retornando no mesmo ano para a Europa, passando a se interessar pelo expressionismo. Em 1923 volta para o Brasil e fixa residência em São Paulo. Passa a ser destaque no cenário da arte moderna como representante das vanguardas europeias. Estando aqui revela um deslumbramento pela luz e pelas cores tropicais. Os quadros produzidos tratam agora do drama dos marginalizados pela sociedade.

Todas as guerras, todos os períodos de conflito geraram reação e interpretações pelo campo da cultura. A boa luta para os que escolhem a civilização e não a barbárie é a luta no capo das ideias. Aqueles que se elegem com o discurso de negação da política, de intolerância, de elogio à ignorância e de violência só preparam o terreno para mais conflitos e mais guerras. Que se pense bem antes das próximas eleições.