A Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico banham esta cidade de fortes raízes portuguesas onde a agricultura e a pesca sobressaem dentre outras atividades econômicas. Por um tempo, num passado muito próximo, a indústria naval foi o carro chefe da economia local, chegando a ser responsável por 90% das contratações de trabalho. Apesar da tentativa de destruição deste seguimento ocorrida nos últimos anos, o setor mostra novamente sinais de reativação para a alegria dos nortenses. Mas é o comércio que me impressiona na cidade. Surpreende a quantidade de lojinhas de vestuário e de variedades ou aquelas especializadas em agropecuária com todo um universo de produtos voltados principalmente para o cultivo secular da cebola. Outro tipo de comércio que me leva a verdadeiras derivas, é um que se vê muito por lá. Trata-se de um misto entre utilidades domésticas, pet shop, ferragem, vestimentas e utensílios do homem do campo, do gaúcho. Não este gaúcho estereotipado que encontramos nos centros urbanos. Não. Falo daquele que está realmente na lida diária do campo.

Nesta última visita, dois acontecimentos chamaram muito a minha atenção. O primeiro foi a lagoa extremamente baixa, “torrada” como dizem os nortenses. Eu já tinha, em outras ocasiões, visto os barcos quase no seco, mas não por tanto tempo. Faz mais de mês que está assim. Não consigo dissociar dos desmatamentos, das queimadas e toda a destruição que ocorre sobretudo no nosso país.

Praia Capivaras – São José do Norte
Sinalização dos prédios históricos

Já o outro acontecimento foi positivo.  Percorrendo as ruas da cidade, percebi um maior cuidado com o patrimônio arquitetônico constituído por construções que remontam ao século XIX. Estes prédios estão agora sinalizados por placas com informações sobre os antigos proprietários e sua utilização no decorrer dos anos, seja como moradia, comércio, bares, cinema, clube, etc. Esta sinalização faz parte do projeto A Educação Patrimonial sob a Ótica do Turismo Cultural em São José do Norte, uma iniciativa da Secretaria Municipal de Turismo, Esporte e Lazer (SMTEL) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC). 

O projeto foi contemplado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura) o que viabilizou a realização por parte da PIPPIs, empresa de Gladis Pippi (Mestre em Integração Latino Americana – História e Patrimônio Cultural, Consultora externa do SEBRAE), a elaboração dos textos e design das placas e dos painéis de sinalização, sendo também a responsável técnica pelo roteiro chamado Encantos do Norte. Além da sinalização fazem parte do projeto a cartilha Educando para o Turismo, distribuída em todas as escolas municipais e o Espaço da Memória e Tradições Quilombolas, feito por meio de registro oral e em vídeo.

Percebi também o investimento privado em algumas restaurações o que é muito bom, mesmo que contemplando preferencialmente a parte externa dos prédios. Tive relatos dando conta da riqueza arquitetônica do interior de alguns deles que não foi mantida, mas o fato de permanecerem em pé, com sua forma o mais próximo do original, já é alguma coisa.

Sinalização e desenho de prédio histórico
Conforme nos posicionamos, o desenho se ajusta ao prédio da rua.

É fato que o crescimento econômico da região atrairá a especulação imobiliária que, em nome do “progresso”, poderá descaracterizar a cidade sempre com o argumento de criar empregos. Mas é urgente o entendimento de que esses ganhos são pontuais e temporários. Os nortenses possuem uma riqueza que pertence a todos. Riqueza que está na sua história, seu patrimônio arquitetônico-cultural e seu modo de vida. Em si só isso já é um ganho, mas pode ainda gerar rendimento permanente para todos a partir do turismo, e só a consciência da população sobre essa riqueza é capaz de conter a sanha de especuladores e a atrair sim, investimentos que respeitem a cidade.

Nós, moradores de São Leopoldo, sabemos bem como é isso. Um prédio antigo de arquitetura requintada é de forma inesperada derrubado e substituído por um caixote pré-moldado. Invariavelmente uma farmácia, uma agência bancária ou mesmo imensas torres de apartamentos passam a ocupar o lugar, agora desumanizado. Por outro lado, nos alegramos quando um raro empresário de visão restaura o prédio e passamos a ter um belo restaurante, bistrô, loja ou outra atividade, que não exclui farmácia ou agência bancária, porém mantendo a humanidade do lugar.

Tive a oportunidade de conversar com a Secretária Municipal de Turismo, Esporte e Lazer, Daiane Gautério Pereira e com Jeane Matos, turismóloga da Secretaria. Num encontro muito afetuoso falamos sobre a importância da preservação de todo este patrimônio e pude também apresentar o projeto Maravilhas, histórias e memórias afetivas e os caminhos que estamos trilhando nesta nova fase.

Eu e Renato voltamos nossa atenção neste momento, para as antigas regatas de pescadores que coloriam a lagoa com os barcos e suas velas latinas, tradição nesta região e chamada de “pano”. A vela latina é uma vela de formato triangular, desenhada para permitir a navegação de contravento que conforme alguns pesquisadores teria surgido no final do período helenístico ou início do período romano. Os portugueses por volta do século XV adaptaram esta vela às caravelas, tornando-se uma das principais características destas embarcações.

Rosana Almendares, Jeane Matos e Daiane Gautério Pereira – Secretária de Turismo, Esporte e Lazer

Como sempre acontece nesses processos de investigação, onde nos deixamos levar pelos acontecimentos, as ocorrências vão se dando e somos presenteados por momentos de grande riqueza como os que relatarei agora.

Vela Latina
Seu Laurindo, quem ainda faz velas latinas. Um amigo e Renato Almendares recebendo o “pano” (vela) para seu barco.

A amiga Carmelina Donatto sabendo de minha estadia no “Norte”, perguntou se eu já tinha conversado com Sérgio e Hildette Roig. Prontamente ela agilizou um contato. Resultado: um final de tarde memorável. Dona Hildette e seu filho Sérgio me apresentaram a obra de José Américo Roig, conhecido como Zeméco, um autodidata que por mais de 50 anos retratou São José do Norte através de suas pinturas, realizando um verdadeiro inventário arquitetônico da cidade. A partir do relato de Dona Hildette, fiquei com a certeza de ter conhecido a história de um homem e artista de espirito livre, amado pela esposa e filhos e admirado pela comunidade. O encontro resultou numa bela gravação em vídeo desta fala onde ela conta desde a juventude do artista, como se conheceram, seus feitos e aventuras, como a de quando ainda jovem, Zeméco construiu umas asas e se lançou em voo desde o telhado de um dos antigos sobrados da cidade.  Após a edição este vídeo será acrescentado aos demais já realizados e fará parte desta segunda etapa do Projeto Maravilhas.

Sérgio Roig e sua mãe Hildette Roig
Pintura de Zeméco e estado atual do prédio retratado
Dona Hildette Roig e Rosana Almendares

Desta visita surgiu uma nova surpresa, um novo conhecimento. Sérgio Roig me passou o contato de Toninho da Keka, um guardião de histórias da cidade, na expectativa de que ele soubesse algo sobre as regatas de pescadores. O casal Toninho e Iara abriram as portas de sua casa numa carinhosa acolhida. Não chegamos às regatas, mas sim à história de Dona Keka, mãe de Toninho, parteira muito conhecida e estimada pelos moradores. Dona Keka começou a partejar com 13 anos de idade e manteve esta atividade, sempre de forma voluntária, por quase toda a vida somando mais de 1000 partos. Ganhou o respeito e estima da população sendo agraciada em 2014 com o Prêmio Amigo Nortense pelos serviços prestados à comunidade. Na medida que o relato se dava, outras histórias foram surgindo como a das viagens no Pau de Arara, os Ternos de Reis, os Dominós e muito mais… E a conversa seguiu num café da tarde preparado com muito cuidado e carinho.

Dona Keka
As parteiras – Jornal do Norte
Iara Colares e Toninho da Keka

Nossa pesquisa para o Projeto Maravilhas continuará voltada para a Vela Latina e as regatas de pescadores, mas o que acontecerá durante esse processo, os encontros que vão se dar, não sabemos. A única certeza é a de que temos que deixar o mundo se apresentar, do jeito que ele é, e estarmos atentos aos seus sussurros.

Maravilhas – Histórias e Memórias Afetivas – Um projeto dos Irmãos Rosana e Renato Almendares.