A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
Fernando Pessoa

O extremo sul de nosso país tem sido tema de interesse para a arte contemporânea. A horizontalidade das paisagens dos campos a perder de vista ou da faixa reta de litoral com amplas praias, provocam sentimentos que transitam entre monotonia, melancolia e a incrível sensação de uma infinita liberdade, levando artistas a desejarem permanecer nessa região por espaços de tempo a fim de sentir esse lugar e interpretá-lo com seus meios de criação.

Desde muito cedo eu e meu irmão fomos conduzidos por estradas que hoje trataríamos como intransitáveis para ter na praia das Maravilhas nossas primeiras impressões sobre o mar, as areias, o vento intermitente, a sensação de amplidão e liberdade. Por parte de pai vem nossa relação com este extremo. Nascido em Santa Vitória do Palmar nunca se desligou totalmente da cidade mesmo tendo vindo muito jovem para Porto Alegre. Por muitos anos, inclusive depois de constituir família, as férias tinham como destino sua cidade natal, o Chuí e a praia das Maravilhas e nossa mãe sempre teve espírito aventureiro suficiente para encarar os desafios destas viagens e aproveitar o que de melhor este território tem a oferecer.

Até hoje andar por esta parte do país envolve um grau de imprevisibilidade. A travessia entre Rio Grande e São José do Norte, por exemplo, continua sendo uma aventura. A balsa que corta a Lagoa dos Patos carregada de veículos de passeio e pesados caminhões de carga exige dos viajantes um elevado grau de paciência em uma espera de horas, numa fila que acaba gerando uma certa cumplicidade entre estranhos que passam a trocar as informações que foram capazes de acessar. Se uma das balsas estiver desativada, como aconteceu agora em minha estadia na região, horário é algo que só é possível ter certeza de que o que consta na tabela afixada no portão não se realizará.  

Para gostar desta região é necessário ter um tanto do espírito do faroleiro que não sente solidão ao estar só e conseguem perceber mudanças incríveis numa paisagem constante e interminável de águas e dunas de areia. O conto Farol do Albardão do livro Histórias de península e praia grande, de Maria Helena Bernardes em parceria com André Severo no filme Arranco, fala sobre esses homens sempre dispostos a receber visitas, mas que ficam tristes quando se aproxima o término de seu período como faroleiro sentindo antecipadamente saudade de toda aquela quietude.

Este é um exemplo, entre tantos, de artistas contemporâneos que voltam sua atenção para o litoral e os campos do sul. Maria Helena desde o final dos anos 1990 já tinha sua curiosidade direcionada para estes lados, quando na companhia de seu marido, o saudoso e talentoso músico Fernando Mattos, veio em busca da localidade chamada Bujuru enfrentando a conhecida Estrada do Inferno e colecionando histórias incríveis que também fazem parte deste livro, intercaladas com os relatos de 2009, ano em que o Documento Areal 7 foi realizado (Histórias de península e praia grande – textos Maria Helena Bernardes – e Arranco – filme de André Severo).

No filme Arranco, André Severo parte do imaginário dos corpos encontrados nas areias da praia na história do naufrágio do cargueiro Inglês carregado de porcelanas que tinha como destino um porto ao Sul. Tripulantes, oficiais e passageiros com suas roupas finas de europeus, foram encontrados na praia. Diz a lenda que o naufrágio teria sido obra dos Piratas dos Campos Neutrais que enganavam os navegantes iluminando a costa.

Outra referência para o filme são os Dominós personagem de origem europeia e típico do carnaval, que fica totalmente encoberto por túnica, capuz e luvas. Em determinadas localidades a brincadeira consiste em adivinhar quem está por debaixo da fantasia. Os foliões vão de casa em casa fazendo muito barulho e aquele que consegue manter seu anonimato ganha uma janta do anfitrião.

Frame do filme Arranco de André Severo
Frame do filme Arranco de André Severo

Tanto nos contos de Maria Helena Bernardes como no filme de André Severo o que sentimos é a sensação de um tempo estendido, o desconforto com um espaço que permanece entre um estado de ruínas e reconstrução e um lugar onde o passado parece falar mais alto que o presente.

Rogério Nunes Marques é outro artista que encontrou no litoral sul o ponto de partida para realização de alguns de seus trabalhos. O vídeo Paisagem de lastro deslocamento 2 é o registro da ação de deslocar um fragmento de naufrágio da Praia do Cassino – Rio Grande – RS para a Praia Brava – Itajaí-SC. Ao olharmos o vídeo somos levados a pensar no conceito de estranhamento desenvolvido por Heidegger. Para o filósofo o estranhamento é o modo fundamental do ser-no-mundo, apesar de cotidianamente encoberto. Passamos de forma desapercebida por tudo que costumeiramente constitui nossa vida diária. A consciência só se dá como possibilidade no momento do estranhamento diante de algo antes corriqueiro. O deslocamento provocado por Rogério leva a esse estranhamento e por consequência à possibilidade de consciência.

Frame do vídeo Paisagem de lastro deslocamento 2 – Rogério Nunes Marques

A artista Mônica Sofia realiza uma série de desenhos e intervenções em fotos digitais que partem da paisagem do Rio Grande do Sul constituindo três conjuntos intitulados 21x”, “Foto-Gráfico” e “Troqueu”. O vento, o frio e o céu nublado inquietavam a artista durante um período de viagens realizadas na região. Ao término de aproximadamente um mês de observação e anotações, as imagens resultantes traduziam uma atmosfera de silêncio e recolhimento. 

Mônica Sofia – Série Torqueu

A horizontalidade da paisagem dos pampas é refletida no formato escolhido para a série Troqueu, por exemplo. Nesta série que retrata os aerogeradores, foi o vento que capturou a atenção de Mônica. Diz a artista em texto sobre o trabalho: Por mais que seja um campo aberto e que o vento sopre livre e forte por ali, nos períodos em que passava por lá, o som do vento era mais suave do que na praia. O vento só emitia um som forte e ritmado porque movimentava as hélices das torres. (…) Os resultados gráficos obtidos com estes trabalhos puderam delimitar o percurso de um pensamento linear, estreitamente relacionado com o ambiente ao qual se refere.” (site ArteContexto ).

E é para esta paisagem que retorno neste primeiro mês do novo ano afim de dar continuidade ao projeto Maravilhas Histórias e Memórias Afetiva realizado em parceria com meu irmão Renato Almendares. Depois de contar, em forma de cinco vídeos, histórias relatadas por moradores de Santa Vitória do Palmar, São José do Norte, Ilha dos Marinheiros e Ilha da Feitoria, voltamos agora nossa atenção para as regatas dos pescadores que costumavam acontecer na Lagoa dos Patos. Conhecer essa prática a partir das memórias dos moradores da região é nosso primeiro intento e a partir do interesse dos pescadores, “deixar acontecer” e ver até onde vamos nesse fluxo de desejos.

Lagoa dos Patos – Foto Rosana Almendares