“Coloque-se no meu lugar”

Exposição na Galeria ECARTA

 

Estando há bem mais de um ano sem visitar uma galeria de arte devido à pandemia, voltei a fazê-lo no último dia 2. A galeria: ECARTA, o título da mostra: Coloque-se no meu lugar, os artistas: Maria Helena Bernardes, Ana Flávia Baldisseroto, Newton Nascimento dos Santos e Daniel Caballero, a  curadoria: Diego Hasse, crítico de arte, pesquisador e curador independente.

Esta exposição teve como característica o fato de não apresentar o trabalho de cada artista e sim os vestígios destes trabalhos, visto que os mesmos se dão no mundo, na ação, na comunicação. O que pudemos ver no espaço expositivo eram sinais das ações realizadas em determinado momento, local ou situação. Aqui trago o reconhecimento ao curador que pesquisa exatamente estas produções e quais as possibilidades de apresentação destes trabalhos ao público. Porém a questão vai além, tanto ele como os artistas, problematizam estas formas de apresentação.

Assim que entrei na galeria fui capturada pela visão de uma cadeirinha vermelha emoldurada pela guarnição de uma porta. Era uma daquelas cadeiras de aula com apoio para caderno ou livro. Me aproximei. Logo reconheci um pequeno livro (depois explico porque o reconheci). Junto ao livro, colado no apoio, estava um QR Code. Percebi que o local era um pequeno depósito e que este estava vivo, ou seja, o espaço não foi transformado, não tinha sofrido uma assepsia, como acontece com o que chamamos de cubo branco, (espaço neutro tratado de forma a que só a obra de arte seja percebida). Nada disso. Ali estava um depósito que tinha recebido mais uma camada de significação, como costumamos dizer. Ele agora, abrigava também, o trabalho de uma artista, ou os vestígios dele.

“Testemunho” é o título desta instalação de Maria Helena Bernardes, que trata dos sentimentos que surgem a partir do encontro entre o corpo e a paisagem.

Em recente live, onde artistas e curador falaram sobre a mostra, Maria Helena salientou que o que importa para ela é a comunicação, no nível do átomo, a comunicação direta, gente com gente. Como fazer isso num espaço expositivo durante uma pandemia? Praticamente impossível. Maria Helena optou então por outra forma de comunicação direta que resultasse no que seria exposto: um livro e um vídeo. Ela entrou em contato comigo e com Vado Vergara da Pocilga Filmes. Coube a mim o projeto gráfico e diagramação do livro e ao Vado,  a direção e edição do vídeo. Eu só tive o total entendimento da intenção da Maria Helena após a live e após visitar a exposição. Não sei como foi para o Vado. Só então percebi que ela tinha confiado a nós a materialização de seu desejo com o mínimo de sua interferência. Recebi fragmentos de textos e fotos tiradas no sítio que ela possui em Osório em parceria com Ana Flávia.  Tive total liberdade para criar o projeto deste livro.

 A capa foi sugestão dela: reproduzir a primeira página apenas acrescentando o nome da autora. Quanto ao vídeo, a informação que tenho é que Vado recebeu o livro e um áudio de Maria Helena. Também ele teve total liberdade de criação. Assim, penso eu, foi apresentado ao público o resultado de um contato, a “nível atômico”, entre a artista e nós, quem sabe seus colaboradores. O vídeo, que podia ser visto no celular de cada visitante a partir do QR Code, oferecia um belo ritmo de apresentação entre colagens e imagens e tendo como fundo a voz da Maria Helena narrando um acontecimento que se deu numa noite no sítio da Borúsia, em Osório. O livrinho ficava ali, a disposição, para uma viagem entre imagens e fragmentos de textos. O pequeno espaço era ainda preenchido com outro áudio, com diferentes relatos de todos os artistas. Estar neste espaço foi como entrar numa cápsula e ser transportada para outro lugar, outro tempo, distante de todo o horror que estamos vivenciando, entre pandemia e acontecimentos políticos.

Passei então para a outra sala onde gravuras, desenhos, mapas, áudios e fotografias se apresentavam como desdobramentos dos projetos Carroça de História Ambulantes e Ateliê de Observação Orgânica, de Ana Flávia Baldisseroto e dos quais Newton Nascimento dos Santos costuma participar.

Já falei aqui, noutra ocasião, detalhadamente sobre o projeto Carroça de Histórias Ambulantes que pode ser definido como um comércio ambulante onde a moeda de troca é uma história contada ao atendente da Carroça. Esse trabalho se dá nas ruas, principalmente em Porto Alegre. Um dia Ana Flávia comentou que para estar nas ruas é necessário entender sua linguagem e aí entra o Sr. Newton Nascimento dos Santos. Ele como ninguém conhece esta linguagem, conhece cada cantinho da cidade, suas belezas e seus perigos, conhece os moradores de rua, convive muitas vezes com eles, fala respeitosamente, entende e é entendido. Seu Newton desde muito cedo se aproximou da Carroça e desde lá vem participando como colaborador. Nesta exposição ele apresentou o trabalho intitulado “Se és minha mãe natureza, como pude fazer isso contigo?”. Um conjunto de fotografias tiradas durante suas caminhadas.

 

Em outra parede desta sala, diversas impressões muito bem cuidadas, reproduziam aquarelas da série “Arte é Inço” de Ana Flávia Baldisserotto. Estas aquarelas foram realizadas a partir de observação e estudo das plantas de crescimento espontâneo no meio urbano de Porto Alegre. As originais podiam ser vistas numa mesa no centro do ambiente que na etiqueta de informação se lia: “Mesa de estudos para observação geográfica e orgânica”. Na parede, junto às impressões, estava outro QR Code que direcionava o visitante para uma página de venda dentro dos princípios da economia solidária, visando a sustentabilidade do projeto.

No outro espaço expositivo estava o trabalho de Daniel Caballero. Uma série de vídeos processuais do trabalho “Cerrado Infinito” definido assim no site do artista: “Cerrado Infinito é o primeiro experimento de recriação de uma paisagem de cerrado dentro de uma área urbana pública. Um refúgio de plantas inevitavelmente extintas ao longo do desenvolvimento da cidade de São Paulo, e expulsas para a periferia até seu completo desaparecimento. O projeto às resgata, mapeando sobreviventes, coletando mudas e sementes para serem plantadas em conjunto, formando ao longo do tempo a visualidade dos extintos Campos de Piratininga. A tentativa é desprogramar territórios pela cidade, e devolver a terra a um marco zero, anterior à ocupação colonial. Também é um esforço para cultivar um terreno baldio e biodiverso, de plantas, animais e de pessoas à medida que recuperam a memória do lugar que habitam. (..)”

Podemos ver que os trabalhos de todos os artistas nesta mostra, acontecem na rua, no espaço público, na natureza ou no que restou dela. Assim duas estratégias foram criadas para que este acontecimento não ficasse restrito ao interior da Galeria ECARTA. Uma foi a criação de Lambes que foram afixados pela cidade e deixados também a disposição dos visitantes. Outra estratégia foi a de realizar caminhadas, que em função da pandemia tiveram de ser restritas a um pequeno número de participantes, mas que cumpriram o papel de dedicar um olhar aos morros de Porto Alegre, e também apresentar esta paisagem à Daniel, artista de São Paulo tendo a experiência de ser conduzido pelo Sr. Newton, conhecedor de todos estes caminhos.

Assim foi meu retorno ao universo das exposições num dia 2 de outubro, finalizado, é claro, por uma boa caminhada de manifestação e protesto pelas ruas do centro de Porto Alegre.