Arte Engajada
Em tempos como o que estamos vivendo, de instabilidade política, de ameaças constantes contra as instituições, ameaças aos direitos dos povos indígenas, quilombolas ou a qualquer forma de ser, estar e pensar que divirja do conservadorismo, do autoritarismo ou da supremacia branca dita “desenvolvida”, em momentos como este, fica mais evidente para o grande público o posicionamento e as ações de artistas que se opõe a este estado de coisas.
O cartunista Renato Aroeira, bastante crítico ao atual governo, em recente entrevista faz uma declaração fundamental para o entendimento dos diferentes posicionamentos. Ele diz algo neste sentido: existem muitos motivos para sermos racistas, xenófobos, machistas ou contra a democracia, mas também existem muitos motivos para não sermos nada disso. Um dia temos que decidir entre eles.
Já o outro Renato, o Almendares, filósofo das longas conversas, infelizmente agora mais pelo WhatsApp do que presenciais, traz a questão do “ôntico” e do “ontológico” tratado por Martin Heidegger. Da vasta explicação que ele me proporciona trago uma pequena chave para introduzir o assunto da arte engajada. Para ele toda a arte é engajada se estiver partindo do “ontológico”, isso quer dizer, do distanciamento necessário para o estranhamento do que é dado, do que está à vista, ou seja, do “ôntico”. Arte e filosofia trabalham nesse lugar, o do distanciamento, problematizando o ôntico, problematizando a representação do real, no tempo e no espaço, até não sobrar nada e se chagar à essência, chegar ao “ser aí” (Dasen). Neste momento estamos instrumentalizados para tomar a decisão à que Renato Aroieira se refere.
Nosso campo, o campo da arte, faz uma distinção entre ‘arte pela arte” e “arte engajada”. Eu concordo com essa distinção só não as coloco em oposição. Para mim são duas formas de pensar e refletir sobre o mundo desde que o artista haja com o que foi dito acima: o devido distanciamento necessário para o estranhamento do que é dado.
Quando pensamos em arte pela arte, estamos defendendo a autonomia da arte, no sentido de que ela não se destina a uma finalidade, ela não precisa ser útil. Ela pode estar, por exemplo, na forma de um copo. Se esse copo não mantiver seu conteúdo ele estará provocando um estranhamento, uma reflexão a partir de uma proposta artística. A arte é livre para fazer um copo que não funciona como um copo. A arte pela arte defende que este estranhamento não se dê por um conteúdo moral ou pedagógico, mas sim pela forma e pelos valores estéticos.
Já a classificação arte engajada, refere-se àquelas manifestações que tratam de forma mais explicita as questões políticas e sociais. Darei um exemplo que à primeira vista pode parecer contrário a tudo que estou dizendo, mas não é. Cito os desfiles que a estilista Zuzu Angel realizou após a morte de seu filho, Stuart, pela ditadura militar. Roupas são úteis, porém Zuzu cria estampas que fazem alusão a violência da ditadura militar, coloca isso nas passarelas da alta costura e seu trabalho é consumido inclusive por aqueles que apoiaram a ditadura. Isso é estranhamento e isso é arte engajada. Não é a utilidade das roupas que está em questão é a ousadia do ato, tanto nas criações de Zuzu como questão da moda como arte.
A arte pode não mudar o mundo, mas ela cria a emoção de sentir que existe a possibilidade de jogo na ordem estabelecida, o que não pode ser reduzido a pequena busca pela provocação que se satisfaz em chocar aqueles que estão muito satisfeitos de serem quem são. Satisfeitos com a decisão referida por Aroeira.
Isso se evidencia em trabalhos como Touch Sanitation da artista Mierle Ukeles (Denver,EUA,1939). Durante quase um ano, Ukeles encontrou com os mais de 8.500 funcionários do Departamento de Limpeza Urbana de Nova York, apertando a mão de cada um deles e dizendo: “Obrigada por manter a cidade de Nova York viva”. O resultado desta performance foi o registro em fotos e documentos de diversas ações realizadas junto e por sugestão dos próprios trabalhadores do Departamento de Limpeza do NY. Esse material foi apresentado em inúmeros museus e instituições de arte, mas mais que isso, a partir do trabalho de Ukeles se deu uma ação direta da artista com os trabalhadores superando o estranhamento de uma mulher num meio tão masculino, a valorização do trabalho destes homens e a conscientização daqueles que visitam as mostras, a respeito do que eles mesmos produzem em lixo para a cidade.
Outro exemplo é o grupo C G Canyon in a Crack (Coletivo Grande Cânion numa Rachadura). O coletivo reúne diversos artistas que tratam das questões ligadas ao espaço público. O trabalho Garden Crack do grupo CMG (um escritório de arquitetura) atua nos espaços tomados pelo concreto trazendo vida através da criação de rachaduras e o plantio de diversas flores, plantas e vegetais. O Grupo explica assim seu trabalho: “Inspiradas nesse tipo de plantas tenazes que abrem minúsculas rachaduras na paisagem urbana, as fileiras desse jardim criam ordem em meio à aleatória mistura de capins, vegetais, flores estranhas e ervas daninhas”.
Banksy (Bristol, Inglaterra – 1973) é um artista britânico e ativista político que através do desenho, da arte de rua, da fotografia, pintura e do cinema realiza uma contundente crítica social e política. Em Girl Frisking Soldier, Banksy subverte as expectativas. O soldado está sendo revistado por uma garotinha, em vez do contrário. É impossível não perceber que o inverso dessa imagem é uma ocorrência mais realista na Palestina. O artista mostra como as pessoas desumanizam umas às outras, vendo-as apenas como ameaças e faz referência a liberdade limitada dos palestinos através desta inversão de papéis, confrontando o público com uma imagem perturbadora.
Nydia Negromonte (Lima, Peru, 1965, nacionalidade brasileira) no seu trabalho Casa das Vitaminas trata das relações sociais promovendo um acontecimento onde, por um intervalo de tempo, as identidades sociais são suspensas e o automatismo cotidianos cede espaço para a invenção. Trata-se de uma usina de sucos montada cuidadosamente. Cada detalhe evidencia o esmero da artista, da caixa d’água aos liquidificadores manuais, das frutas aos recipientes disponíveis. A usina é montada em espaço público e aos poucos os passantes vão se aproximando. Sem muita explicação as pessoas vão entendendo o mecanismo e começam a cortar suas frutas, a usar os liquidificadores, a trocar instruções entre si, a provarem umas, as diferentes combinações de frutas realizados por outras. Aqui o não saber é tão imprescindível quanto o saber.
Finalizo com uma frase de Renato Almendares “Mais importante do que ter as respostas é ser capaz de fazer as grandes perguntas”.