VONTADE DE VERDADE –

Vivemos o tempo da mentira oficial

 

Na Hungria, sob o governo da extrema direita de Victor Orbán, foi lançada uma lei anti-LGBT considerada por Alemanha, Suécia, Holanda, França e Irlanda, como “forma flagrante de discriminação com base na orientação sexual”. Estes países pertencem à União Europeia assim como a Hungria e diante da reação de repúdio à tal lei, Victor Orbán resolve, cinicamente, demostrar como seu governo é democrático e lança um referendo a ser respondido pela população. Segue o conteúdo de três das cinco perguntas apresentadas:

– Se aceitariam que a escola debatesse sexualidade com seus filhos SEM O CONCENTIMENTO DE SEUS PAIS.

– Se apoiariam a promoção do tratamento de redesignação sexual PARA MENORES DE IDADE.

– Se apoiariam a apresentação IRRESTRITA, PARA MENORES, de conteúdo de natureza sexual QUE AFETEM O SEU DESENVOLVIMENTO.

E Orbán ainda dá a recomendação para que o povo responda Não. Alguém responderia Sim para perguntas elaboradas desta forma?

Existe Vontade de Verdade num referendo como este?

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A expressão Vontade de Verdade pode ser entendida de duas formas: como instrumento de manipulação quando a “busca pela verdade” se dá num mundo exterior ao homem, onde estão as verdades absolutas que devem ser reveladas e seguidas, ou Vontade de Verdade pode ser entendida como o desejo de chegar a verdade de um ser pensado na sua finitude. Neste caso não existem verdades absolutas e sim verdades sujeitas a circunstâncias e ao tempo, situação em que se abre espaço para o pensamento, para as teses, para a argumentação e para ouvir o outro.

Vontade de Verdade é um conceito que surge no âmbito do pensamento filosófico ocidental. Se manifesta na filosofia a partir de Platão, fazendo o homem voltar-se para um além-mundo, ou seja, o mundo das ideias perfeitas. Esta tradição metafísica do ocidente, que para alguns vai da aurora do pensamento grego ao crepúsculo da era atômica, se debruça na “busca pela verdade” e os valores difundidos então, estariam calcados nesta “única verdade”, o sumo bem advindo do mundo das ideias perfeitas.

Um filósofo que vai criticar essa concepção de Vontade de Verdade é Nietzsche (1844-1900). Para ele esta concepção afastaria o homem do fluxo da vida e o tornaria facilmente manipulável, sujeito a massificação do que é individual e particular. A Vontade de Verdade pensada externamente ao homem e não nos parâmetros de sua finitude, teria por fim instituir um controle da vontade humana assentado nas verdades absolutas. Neste sentido ele também vê o risco de manipulação quando se dá a passagem da metafísica para a ciência, e esta continua agindo no mesmo sentido da busca de verdades absolutas.  Penso aqui no número de vezes que mentes mal-intencionadas falaram em nome da ciência para justificar racismo, machismo e genocídios, “demonstrando cientificamente” a inferioridade de dominados em relação aos dominadores.

Nietzsche estende sua crítica à Vontade de Verdade baseada em verdades absolutas, ao cristianismo uma vez que este seria um desdobramento do platonismo confirmado pela declaração do filósofo medieval Agostinho (354-430) que afirmou ser Cristo o sumo bem que Platão antevira.

Michel Foucault (1926 – 1984) teórico social e filósofo, diferentemente de Nietzsche, acredita que a Vontade de Verdade não atua através da metafísica ou da ciência e sim através do discurso realizado pelas instituições sociais, que visam, também, o controle da vontade humana e o controle social. Nesta interpretação todos aqueles que se recusam a ser direcionados pela Vontade de Verdade instituída são excluídos, reprimidos e forçados a fazer parte deste discurso. Foucault, a partir daí, vai desenvolver sobre A Microfísica do Poder.

Já o filósofo Martin Heidegger (1889 – 1976) coloca a questão sob outro ponto de vista. Ele traz o “Dasein”, o ser aí, o ser no mundo. Recolocando o ser nos limites do tempo ele traz o pensamento do homem, sobre o homem na sua finitude. Ele vê na finitude do ser-no-mundo a condição essencial para tratar da verdade, tema este fundamental à filosofia. Heidegger não se coloca na posição de destruir a tradição metafísica e sim propõe um olhar para a essência da metafísica, para seu fundamento esquecido, que se encontraria lá nas experiências originais dos gregos, do ser, do pensar, da linguagem. O Dasein está aberto para si mesmo e para o mundo, e justamente só com a abertura do Dasein é que se pode alcançar a originalidade do fenômeno da verdade.

A linguagem fala nos diz Heidegger, ou seja, Heidegger alerta para nos desvencilharmos de pensamentos hegemônicos advindos de saberes indiferentes às possibilidades existenciais, as quais são múltiplas. A linguagem se mostra nas incertezas resultantes entre o falante e aquele com quem se fala, desta forma o ser-aí (Dasein) é jogado no mundo das multiplicidades e das possibilidades e desta forma não se submete por obediência às seguranças e garantias do mundo das certezas, das verdades absolutas, de um sujeito que se pauta numa única realidade.

Vivemos um momento em que a mentira tomou o espaço público de uma forma, acredito eu, nunca vista. Vivemos hoje no país da mentira oficial onde o presidente fala em uma live e em seguida as instituições têm que lançar desmentidos sobre sua fala. Vivemos num tempo em que os meios tecnológicos multiplicam e espalham as inverdades de forma exponencial, onde pessoas criadas no mundo analógico não sabem como lidar com esta nova realidade, não conseguem falar sobre nada sem colocar antes da frase um “não sei se é verdade, mas…”. Isso embaralha totalmente os jogos de linguagem, causa total insegurança e descrença na humanidade.

A arte, tão combatida pela extrema direita, ainda é o espaço de reconexão com o humano, o espaço do pensamento, do surgimento das teses, o espaço para a argumentação e principalmente para ouvir o outro. Neste sentido trago aqui o trabalho da artista Ana Flávia Baldisserotto que lida fundamentalmente com uma escuta respeitosa e generosa.

ANA FLÁVIA BALDISSEROTTO

E O ARMAZÉM DE HISTÓRIAS AMBULANTES

 

Ana Flávia é artista, professora, mãe e criadora do projeto Armazém de Histórias Ambulantes. A Carroça, como costuma ser carinhosamente chamada, é uma banca itinerante de escambo que tem como sede uma carrocinha. Atuando nas ruas de Porto Alegre desde 2007, oferece aos transeuntes uma coleção de produtos singulares gerados em parceria com seus colaboradores espontâneos.  A moeda necessária para levar o item desejado é a disponibilidade do interlocutor de contar uma história ao atendente de plantão.

No site do projeto encontramos todo o histórico deste “empreendimento”, que tem seu início no desenrolar de um outro trabalho em parceria com a também artista e amiga Maria Helena Bernardes, trabalho que resultou no livro A estrada que não sabe de nada. Tudo iniciou em Eldorado do Sul, numa das andanças pela cidade, quando as amigas se deparam com uma carrocinha na qual costumavam ser vendidos cachorros quentes e outros lanches em dias de feriado e festa na cidade. Pois a carrocinha estava à venda… Mesmo sem saber o que seria comercializado na unidade, ela foi adquirida, principalmente por sua graça e beleza. Por fim, para não se afastar muito das origens como artista, o primeiro “produto” escolhido para fazer negócio foi a fotografia, mas não qualquer fotografia. Seriam fotos descartadas, aquelas que “não deram certo” e a moeda de troca, sempre uma história a ser contada para o/a atendente.

Ana Flávia relata no site: As primeiras experiências de funcionamento da banca no espaço público da cidade aconteceram em 2007, na orla do Guaíba, próximo à Usina do Gasômetro, e em 2011, na Praça da Alfândega e no Bairro Tristeza. Depois de uma primeira aproximação casual, muitas pessoas voltavam semanalmente para conversar, contribuir com algo seu que acreditavam pertencer ao universo da Carroça, contar mais uma história, levar mais um postal, oferecer fotografias de seus acervos domésticos, trazer um parente ou amigo, ou simplesmente ficar por ali, observando o movimento das ruas em companhia de amigos improváveis….

Além de acionar o improviso, a imaginação e a memória dos narradores de rua, colocar em curso indagações de ordem estética na confluência de palavras e imagens, da oralidade e da escrita, ficou claro desde esse início que a Carroça abria um espaço público de escuta, uma fresta para o encontro, onde relações de disponibilidade, confiança e empatia entre estranhos podiam florescer.

Os sinais de que era preciso prosseguir com os trabalhos eram muitos. Assim, a partir do encorajamento e da orientação generosamente oferecidos por outros ambulantes e trabalhadores atuantes no Parque da Redenção e entorno, em março de 2013 a banca passou a funcionar como um ponto de comércio regular, abrindo quinzenalmente no parque.

Ao longo desses anos de histórias e encontros férteis, a Carroça gerou ao seu redor uma rede aberta e multidisciplinar de apoios e colaborações. Hoje, o trabalho voluntário dessas pessoas – a quem carinhosamente chamamos de “carroceiros” – dá sustentação a boa parte das atividades do Armazém. Como parte dessa rede, cabe ressaltar o compartilhamento vivo com membros do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura da UFRGS (NUPPEC-UFRGS), em diferentes espaços de estudo e conversa, sejam eles formais e informais. Ao longo dos anos, a Carroça teve também a alegria de receber muitos convites para conversar, para relatar suas andanças em encontros, palestras, aulas, seminários e mesas de debate públicas com ênfase em áreas tão variadas como Artes Visuais, Letras, Psicologia, Educação, Arquitetura, Patrimônio, Cidadania e Espaço Público. 

Proposições como o Armazém de Histórias Ambulantes podem ser descritas como “processos abertos de conversação e improvisação […] onde a produção estética está associada ao desenvolvimento de modos experimentais de coexistência”. O cotidiano da Carroça se faz nesse encontro de diferentes saberes, grupos e agentes sociais, em um coletivo horizontal, tecendo com o contexto, com as circunstâncias, com a cidade. Na fricção com o que vem da rua, com o inesperado, a vida da Carroça vem se fazendo desse entrelaçamento de muitas mãos e vozes.

O projeto contempla ainda a Rádio Carroça, uma série de podcast onde Ana Flávia conta as histórias mais significativas dos primeiros anos e nestes tempos de pandemia surgiu o Tele histórias, um número específico para quem quiser entrar em contato e contar sua história.

 

Carroça de Histórias Ambulantes pode ser encontrado em

http://www.historiasambulantes.com.br

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