POLÍCIA! /PARA QUEM PRECISA / POLÍCIA!
Uma reflexão sobre a liberdade
Feminicídio, genocídio, racismo, falsificação de remédios para tratamento de câncer infantil, atravessadores roubando na compra e venda de vacinas, e mais, ser capaz de pensar em lucro em plena catástrofe sanitária mundial.
Algo deu errado.
Fracassamos.
O homem não é “naturalmente” nada, diz meu irmão, Renato Almendares, em uma de nossas longas conversas. Para ele o homem não “É” naturalmente, ele é sim uma Invenção. Diz ele: entre a natureza (o bicho que nos suporta) e o pensamento que simplesmente tenta reproduzir na sociedade a barbárie, entre uma coisa e outra, existe a invenção.
Gosto desse pensamento porque olhando para o que estamos vivendo, percebo que reproduzir na sociedade a barbárie é o caminho mais fácil, ir contra ela dá trabalho. Para inventar tem que questionar. É necessário que cada um questione a si próprio, saia do conforto de suas convicções, questione seu tempo. Muito mais fácil é aceitar e até justificar tudo como sendo da “natureza” humana. Justificar o racismo, a violência, o feminicídio, a discriminação como algo passível de ser naturalizado, mesmo que formalmente existam regramentos contra tudo isso.
Muito mais fácil do que lutar por outro paradigma de civilização é nos acomodarmos e nos enchermos de regras, proibições, encarceramentos, dogmas religiosos que nos obriguem a caminhar por corredores estreitos em meio ao caos, sem olhar para os lados, vivendo mecanicamente, cumprindo um papel que certamente se destina a beneficiar alguém que se coloca em posição de privilégio nesta organização. Quando os regramentos não são mais balizados por leis morais e sim por interesses de segmentos, quem pensa sobre tal regramento, quem o contesta, é perseguido e condenado pelas mesmas regras que ele um dia pensou terem sido criadas para lhe proteger.
Essa inversão é tratada na música Polícia dos Titãs (letra de Tony Belloto):
(Polícia)
(…) Dizem que ela existe
Pra ajudar!
Dizem que ela existe
Pra proteger!
Eu sei que ela pode
Te parar!
Eu sei que ela pode
Te prender!(…)
…..
E a liberdade? Que assunto bom!
A liberdade assusta. Ter que assumir responsabilidade por escolhas feitas, assusta. Viver em alerta permanente contra arbitrariedades dá trabalho. Liberdade exige pensamento, reflexão e o cinismo está em quem, clamando por liberdade, aprisiona pessoas, restringe pensamentos, faz tudo para que o outro nunca tenha sequer o desejo de se libertar, nunca tenha, sequer, a consciência de que está sendo explorado.
Para Aristóteles (Grécia 384 a.C.- 322 a.C.) a liberdade está baseada na possibilidade de realizar escolhas orientadas pela vontade sendo o conhecimento, a ferramenta capaz de ampliar as possibilidades de escolha.
Para John Locke (Inglaterra – 1632-1704), cujas reflexões se inserem na raiz do pensamento liberal, as pessoas teriam abandonado a liberdade natural escolhendo viver sob o governo de um Estado que lhes garantiria o direito à propriedade. A vida passa a ser orientada pelas leis sendo inaugurada assim a liberdade civil.
Para Kant (Alemanha – 1724-1804), liberdade está relacionado com autonomia. É o direito do indivíduo criar regras para si mesmo, que devem ser seguidas racionalmente. Essa liberdade só ocorre realmente, através da vontade em conformidade com as leis morais.
Já no século XX, Sartre (França – 1905-1980) afirma que a liberdade é a condição de vida do ser humano. O princípio do homem é ser livre, estando assim obrigado a realizar escolhas para construir sua própria existência.
Do meu ponto de vista um dos pensamentos mais sofisticados que a mente humana elaborou com base na liberdade é o anarquismo. Falar verdadeira e profundamente sobre ele requer muito cuidado e não é coisa para texto curto, pois corre-se um grande risco de falsas interpretações. Um texto bem escrito sobre o anarquismo será um texto que desacomoda o leitor que nunca teve contato com o este pensamento, desestrutura, chega a amedrontar e ao mesmo tempo enche de entusiasmo. Ao falar resumidamente perde-se a complexidade. Mas falar de liberdade sem citar o anarquismo, para mim é impossível. Então vou arriscar já pedindo desculpas aos anarquistas.
O teórico político, sociólogo, filósofo e ponto de referência do pensamento anarquista Mikhail Aleksandrovith Bakunin (Rússia, 1814 – 1876, Suíça), colocava a liberdade nos seguintes termos: “minha liberdade pessoal é assim confirmada pela liberdade de todos e estende-se até o infinito. Enquanto existirem pessoas presas não serei livre”.
Para os anarquistas a busca pela liberdade deve ser constante e a revolução um ato permanente e não um episódio redentor que salvará a humanidade. A ideia de revolução permanente é, originalmente, de Pierre-Joseph Proudhon (França 1809-1865), filósofo político e econômico, primeiro grande teórico do anarquismo, que criticou o processo revolucionário francês por ter vivenciado os efeitos autoritários que ele promoveu. Acreditava que a revolução burguesa apenas tinha trocado um poder autoritário por outro.
A proposta de Proudhon era a de associações de trabalhadores visando desfazer a centralidade do poder moderno, ou seja, a centralidade do capital que rouba nosso trabalho; a centralidade do Estado, que rouba nossa liberdade e a centralidade da igreja, que rouba nossa consciência.
Quando um neoliberal defende a liberdade através do individualismo ele está defendendo a lei do mais forte, está reproduzindo na sociedade a barbárie, está defendendo a liberdade de oprimir e de cometer injustiças.
Quando um anarquista defende a liberdade do indivíduo ele está inventando, ele está dizendo que o que nos diferencia dos animais é a nossa capacidade de revoltar contra nossa própria condição, não como um ato autoritário, mas como um ato de vontade.
Um anarquista será sempre perseguido justo por viver em estado permanente de revolução. Porque tem consciência de que deve sempre usar da Razão afim de lutar contra a injustiça e não a cometer (um fascista nega a razão justamente para poder cometer a injustiça). Os anarquistas preferem morrer a perder sua liberdade e bem por isso são livres, e bem por isso sabem que juntos são invencíveis, e bem por isso trabalham com a sedução, com a arte, com o prazer, com o fantástico, com a utopia. Um anarquista tem a capacidade de amar.
Quem faz coletivamente o verdadeiro uso da Razão, não precisa de polícia.
Polícia!
Para quem precisa
Polícia!
Mulheres anarquistas
As mulheres sempre estiveram presentes e atuantes no pensamento e eventos anarquistas. Trago aqui dois exemplos.
Maria Lacerda de Moura
Maria Lacerda de Moura (Manhuaçu, 16 de maio de 1887 — Rio de Janeiro, 20 de março de 1945) professora, escritora, anarquista e feminista brasileira. Participou dos esforços oficiais para enfrentar a questão social através de campanhas nacionais de alfabetização e reformas educacionais. Considerada uma das pioneiras do feminismo no Brasil.
Começou a publicar crônicas em um jornal da cidade de Barbacena, Minas Gerais, em 1912 e em 1918 publicou seu primeiro livro, Em torno da educação. A partir daí, estabeleceu contatos com jornalistas e escritores de Belo Horizonte, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Nesse período, conheceu José Oiticica e teve contato com as ideias pedagógicas renovadoras da médica feminista Maria Montessori e dos pedagogos anarquistas Paul Robin, Sebastien Faure e Francisco Ferrer y Guardia. Mudou-se para São Paulo em 1921, aos 34 anos, e lá teve seus contatos com o movimento associativo feminino e o movimento operário da época. Chegou a colaborar com a feminista Bertha Lutz e presidiu a Federação Internacional Feminina. Em 1922, rompeu com os movimentos associativos feministas, fundamentalmente preocupados com o sufrágio feminino, pois entendia que a luta pelo direito de voto respondia a uma parcela muito limitada das necessidades femininas. Colaborou assiduamente com a imprensa operária e progressista de São Paulo e em 1923 lançou a revista Renascença.
Emma Goldman
Emma Goldman (Lituânia, 27 de junho de 1869 — Canadá, 14 de maio de 1940) foi uma anarquista lituana, conhecida por seu ativismo, seus escritos políticos e conferências que reuniam milhares de pessoas nos Estados Unidos. Teve um papel fundamental no desenvolvimento do anarquismo na América do Norte na primeira metade do século XX.
Atraída pelo anarquismo após a Revolta de Haymarket (1886)*, Goldman tornou-se uma renomada ensaísta de filosofia anarquista e escritora, escrevendo artigos anticapitalistas bem como sobre a emancipação da mulher, problemas sociais e a luta sindical.
Durante sua vida, Goldman foi celebrada por seus admiradores, como uma livre pensadora e “mulher rebelde”, e achincalhada pelos adversários, como sendo defensora de assassinatos políticos e revoluções violentas. Seus escritos e conferências abrangeram uma variedade de assuntos, incluindo o sistema prisional, ateísmo, liberdade de expressão, militarismo, capitalismo, casamento e emancipação das mulheres. Também desenvolveu novas formas de incorporar políticas de gênero no anarquismo. Emma Goldman faleceu na cidade de Toronto, no Canadá em 14 de Maio de 1940.