O cinismo

Como método histórico para justificar o injustificável

 

Estamos presenciando um dos piores momentos da sociedade brasileira e diante disto proponho pensarmos em como a perda do sentido da linguagem, a violência, a mentira e o direcionamento do ódio foram usados como método durante o decorrer da história da humanidade para governar e alcançar os mais diversos interesses.

Agora a linguagem volta a perder o sentido. Tudo é invertido como forma de justificar o injustificável. Assistir a CPI da Covid por exemplo, é presenciar um exercício de retórica onde uma ocorrência verdadeira é justaposta à uma mentira para justificar uma ação comprovadamente criminosa, ação esta que tem como fim alcançar diferentes interesses, sejam econômicos, de eliminação de um segmento da população ou o mero desejo de poder. O atual governo é marcado pela falta de pensamento e pelo uso do cinismo. Em recente artigo Marilena Chauí nos diz: a marca essencial do pensamento é a distinção entre o verdadeiro e o falso enquanto as falas de Messias Bolsonaro concretizam aquilo que Theodor Adorno denominou cinismo, isto é, a recusa deliberada de distinguir entre o verdadeiro e o falso, fazendo da mentira a arte de governar.

Devido a recorrência é que arrisco considerar a perda de sentido da linguagem como um método e escolho para comentar neste texto, um desses momentos: o decorrer da idade média e o início do capitalismo quando grupos de pessoas eram perseguidas e exterminadas por desejarem uma sociedade mais justa e onde, por fim, milhares de mulheres foram condenadas à morte pelos meios mais terríveis, no evento que ficou conhecido como “caça às bruxas”. Aqui temos envolvidos interesses econômicos, desejo de poder e direcionamento do ódio à mulher com objetivo de colocá-la no lugar passivo e submisso de produtora de mão de obra.

O sistema econômico, político e social denominado feudalismo se estabelece no século V após a queda do Império Romano devido, entre outros motivos, aos constantes ataques “bárbaros” e a derrocada econômica do império. A alta nobreza detentora de terras (os suzeranos), retira-se para o campo e cede parte de suas terras à baixa nobreza que passa a ser vassala do nobre devendo-lhe fidelidade, lutando por ele e pagando impostos pelo uso da terra. Já a camada mais pobre da população aproxima-se do senhor feudal na condição de servo, condição um pouco melhor do que a de escravo, porém o senhor feudal tinha total direito de posse sobre a pessoa e os bens do servo e este não tinha liberdade de sair do feudo.

Cada feudo tinha suas regras que definiam as condições do trabalho laboral nas terras do senhor, os impostos, as punições para os que não produziam adequadamente ou não pagavam os impostos. Definiam até as relações sociais estabelecendo por exemplo, se uma viúva poderia se casar novamente e com quem.

Além dos nobres, dos vassalos e dos servos, também faziam parte deste sistema os vilões, que eram camponeses, homens livres residentes em pequenas vilas que se aproximaram do feudo, abdicando inclusive de sua liberdade, em busca de proteção dos ataques “bárbaros”.

A terra era dividida entre as do senhor, cultivadas pelos servos, as destinadas às residências destes e um pequeno cultivo e as faixas comunais. Estas eram de grande importância sendo utilizadas tanto pelos camponeses livres como pelo servil. Pradarias, bosques, lagos e pastos propiciavam recursos para a economia camponesa pois dali extraiam a madeira para construção, a lenha e criavam os animais.

Este espaço de atividades coletiva fomentava a coesão e cooperação comunitárias. No final da idade média o cercamento das terras e fim das faixas comunais será motivo de grandes revoltas do campesinato, porém antes disto os abusos dos senhores feudais, a falta de perspectiva, falta de terras e de trabalho provocaram não só as revoltas constantes, mas também o surgimento de seitas como a dos Milenaristas e os Hereges que buscavam uma nova forma de organização social.

Os Milenaristas foram movimentos de curta duração, porém os Heréticos tinham a consciência de criar uma nova sociedade. Criticavam a hierarquia social, a exploração econômica e denunciavam a corrupção da Igreja. Sobreviveram por séculos apesar das perseguições. Eram compostos a princípio por camponeses empobrecidos, prostitutas e padres afastados do sacerdócio, mas com o tempo suas ideias conquistaram trabalhadores urbanos e rurais, homens e mulheres, que se encontravam descontentes com as condições de vida optando por viverem em comunidades autônomas fora dos feudos ou a perseguir o ideal da pobreza vivendo de esmolas. Esses movimentos representavam grande perigo para a economia do mundo feudal atraindo como adversários ferrenhos tanto a alta nobreza como representantes da igreja católica e protestante.

Os Cártaros constituíam uma das mais importantes seitas hereges com grande influência nos movimentos sociais. Tinham por característica a aversão à guerra (inclusive as Cruzadas), oposição à pena de morte, tolerância com outras religiões, eram vegetarianos (se recusavam a matar animais), repudiavam o matrimônio e a procriação. Esta última característica não era incomum na sociedade medieval até o século XIV visto que a escassez de terras e de trabalho provocavam o desejo de controle da natalidade. Para os Cártaros a recusa à procriação, mais que um desprezo pela vida, significava a recusa de colocar no mundo um ser condenado a uma vida degradada à mera sobrevivência.

As mulheres ocupavam elevada posição nos movimentos heréticos. Tinham os mesmos direitos que os homens, desfrutavam de vida social e mobilidade, tinham direito a ministrar sacramentos, pregar, batizar e alcançar ordens sacerdotais. Os Cártaros adoravam uma figura feminina designada como a Senhora do Pensamento e em alguns grupos heréticos, as mulheres formavam suas próprias comunidades mantendo seu trabalho fora do controle masculino.

A perseguição aos hereges se intensificou após a Peste Negra (século XIV) quando a mão de obra se tornou escassa. Como justificativa à perseguição seus costumes foram grotescamente distorcidos e o método da inversão do sentido da linguagem e o uso da mentira se intensificaram. Passaram a ser acusados de sodomia, licenciosidade sexual, de cultuar animais, de rituais orgásticos, voos noturnos e sacrifício de crianças. A figura do herege começou, cada vez mais a ser associada a uma mulher, de forma que no século XV, a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges.

Três ocorrências fundamentais precisam ser citadas aqui para entendimento do contexto, principalmente em relação ao que termina como perseguição às bruxas. A condição da mulher, a monetarização da economia e a evasão das mulheres para a cidade.

No início do sistema feudal o trabalho da mulher era valorizado. Tanto o doméstico como o que se destinava a produção de alimentos, se igualava em importância às atividades realizadas pelos homens. Com a mudança do trabalho laboral (aquele realizado como forma de pagamento em troca do uso da terra) pelo trabalho pago, a situação da mulher começa a mudar. Essa troca de trabalho laboral por pago se dá como uma das conquistas dos inumeráveis conflitos entre o campesinato (servos e vilões) e os senhores feudais durante toda a Idade Média, dando então praticamente fim à servidão.

Acontece que esta comercialização da vida provoca o endividamento daqueles camponeses com menor condição de gerar riqueza e como consequência estes passam a trabalhar para o camponês mais abastado resultando no afastamento da mulher dos trabalhos externos e restringindo suas atividades ao âmbito doméstico. Com o tempo lhe foi também reduzido o acesso à renda, perderam o direito a herdar um terço da propriedade do marido e no meio rural perderam o direito à propriedade da terra. Em consequência elas abandonaram o campo de forma que no Séc. XV representavam uma alta porcentagem da população das cidades, vivendo, num primeiro momento, em condição de pobreza, fazendo trabalhos mal pagos na casa alheia, sendo vendedoras, fiandeiras, membros de guildas ou prostitutas. Porém na cidade a subordinação das mulheres à tutela masculina era menor. Podiam viver sozinhas como chefes de família com seus filhos e formar comunidades compartilhando moradia com outras mulheres.

Com o tempo elas passam a dominar muitas das atividades que posteriormente viriam a ser consideradas como trabalho masculino. Trabalhavam, por exemplo, como ferreiras, açougueiras, padeiras, chapeleiras, cervejeiras, cardadeiras de lã e comerciantes. Tornaram-se professoras escolares, médicas e cirurgiãs competindo com os homens em contratações públicas do sistema de saúde.

Sabemos hoje que desde o século V até o XV não foram poucas as mulheres que se dedicaram e tiveram produção na literatura ou na filosofia, principalmente aquelas que seguiam a vida religiosa ou as pertencentes a nobreza, porém o início de uma reação misógina se dá com a nova independência feminina e a ocupação dos postos de trabalho.

Neste cenário de perseguição aos hereges, agora representados pela figura feminina da bruxa, e pela competição no mercado de trabalho e viabilização do nascente capitalismo que necessita do patriarcado e exploração da mão de obra, se dá a perseguição e morte de milhares de mulheres queimadas nas fogueiras atiçadas por mentiras, discursos de ódio e muito cinismo.

Hipátia de Alexandria (355 – 415)

 

O conhecimento científico foi motivo de morte para mulheres e homens no decorrer da história.  Esse foi o caso de Hipátia de Alexandria no século V. Tida como a primeira mulher matemática que a humanidade tem registro, era filha de Theon, matemático, filósofo, astrônomo e um dos últimos diretores do Museu de Alexandria. Decidiu seguir os caminhos do pai em busca do conhecimento. Por defender o racionalismo científico e a matemática foi acusada de blasfêmia e sentimentos anticristãos, mesmo nunca tendo se declarado avessa ao cristianismo. Na verdade, Hipátia dava aulas para pessoas de diversas crenças religiosas. Foi morta de forma bárbara em uma emboscada.

Retrato de Hipátia de Alexandria (Foto: Desenho de Jules Maurice Gaspard (1862–1919)/ Reprodução Wikimedia Commons)

Petrolina de Meath (1300-1324)

 

Foi acusada de ser cúmplice de Alice Kyteler, de quem era serva, quando o marido da patroa faleceu. Por se tratar do quarto casamento de Alice, o Bispo de Ossory, Richard de Ledrede, acusou-a de recorrer à métodos de bruxaria para enriquecer e assassinar seus maridos. Para incriminar Alice Kyteler, Petronilla foi torturada até confessar que ela e Alice praticavam bruxaria e feitiçaria. Foi queimada viva na fogueira, junto a outros servos. Com a ajuda de parentes, Alice Kyteler fugiu. 

Execução de Petrolina de Meath.