Dói reconhecer um erro
A mudança pública de posição
Recentemente uma entrevista de Felipe Neto causou grande repercussão. Além de suas declarações no campo da comunicação, campo que ele domina muito bem, sua afirmação de que dói reconhecer que se errou foi marcante.
Felipe Neto é conhecido por ter um dos maiores canais brasileiros no YouTube, com 41 milhões de inscritos e mais de doze bilhões de visualizações acumuladas. Foi o primeiro youtuber a conquistar um milhão de inscritos no Brasil e é o segundo mais assistido no mundo abordando em vídeos sua opinião sobre celebridades, atividades do cotidiano, filmes e política. Criador de algumas empresas na área de network e curadoria de conteúdo digital, Felipe entende como ninguém a forma de gerar fortuna neste meio, forma essa que tem como base saber quais assuntos e qual a maneira de abordagem que garantirão maior adesão de público.
Felipe Neto é o representante desta geração que para aqueles como eu, oriundos do século passado e do mundo analógico, costumam referir como jovens que nasceram com um celular nas mãos e que aos 6 anos de idade já davam aula de informática para os pais ou ajudavam os avós a fazerem as compras pela internet, coisa tão necessária hoje em tempos de pandemia. Faz parte desta geração que ainda adolescente, faz fortuna na internet sem sair de casa, sem ter patrão, sem bater ponto… Como assim? Como é possível, nos perguntamos.
Não podemos negar que é um novo mundo este em que estamos. Menosprezar a fala de um jovem só porque ele vive o agora e pensa o agora é de uma soberba atroz. Mas Felipe Neto aparenta ter ido além do aqui e agora. Em determinado momento ele dá uma virada no seu posicionamento, principalmente político, fato que o está colocando ainda em maior evidência. Num determinado momento ele percebeu a necessidade de um distanciamento do agora, buscou auxílio de um professor e se lançou na tarefa de tentar entender como se constitui nossa sociedade. A percepção de que era necessário rever suas posições é um mérito sem sombra de dúvida, pois mudar, para quem está ganhando muito dinheiro neste campo de atuação, ou em outro qualquer, é sempre uma decisão arriscada.
O que levou o youtuber a perceber que estava na hora de mudar é uma pergunta que pode ter duas respostas. Uma pragmática e outra esperançosa. A pragmática poderia vir de sua excepcional percepção dos caminhos da monetização de seus vídeos, base de toda sua fortuna, antevendo que demonizar a esquerda, o PT, Lula e Dilma, num futuro nem tão próximo do momento em que ele deu a virada, já não seria mais o grande tema gerador de likes. A resposta esperançosa, e quero acreditar nela, é a de que ele realmente tenha percebido, a partir do seu conhecimento do poder de influência e manipulação dos dados, metadados e tudo mais em que as big techs, as gigantes da tecnologia, se baseiam e concentram poder agindo sobre as populações em escala global, a partir deste entendimento, tenha percebido que algo estava errado e tenha recorrido a um maior entendimento da política, da sociologia e da história resultando na sua confissão de erro.
Na entrevista concedida ao Grupo Prerrogativas, constituído por juristas e advogados que lutam pela democracia, Felipe Neto alertou que as redes sociais e as ferramentas deste meio serão novamente usadas com todo seu potencial nas eleições de 22 e, infelizmente, as fake News serão amplamente veiculadas. Mesmo que o público, estando mais preparado, seja outro em relação ao de 2018, os mecanismos são muito poderosos e não podem ser menosprezados.
Porém o que muito me marcou na entrevista foi o momento em que, a partir do relato de sua infância, ele constata que na juventude apenas fazia repetir algo dado como verdade. Conta como foi criado em um ambiente de total ódio aos movimentos dos trabalhadores, ódio ao PT, ódio ao Lula. Felipe herdou e replicou em seus vídeos esse menosprezo sem refletir sobre ele, assim como boa parcela de nossa população fez e ainda faz. Ganhou adesão de quem se identificava com tais agressões gerando os likes e as visualizações tão desejados. O problema é que Felipe se dirige aos jovens e contribui para a formação destes. Reside aí, do meu ponto de vista, o acerto, em tempo, de Felipe Neto, revendo suas posições e mudando seu discurso. No longo e emocionado momento da entrevista, admitiu que seus ataques aos ex-presidentes Lula e Dilma foram um erro e proferiu a frase marcante: “Como dói admitir que se errou”. Ficou da entrevista a ideia de que ser crítico a um governo, apontar seus erros é sempre necessário e urgente, mas estas não podem ser falas de convencimento e sim de argumentação.
Se olharmos para a história, do Brasil colônia à república, vemos como a organização política e econômica de nosso país naturaliza a exploração de uma parcela da população por parte de quem detêm o poder econômico. Nesta organização o Estado sempre esteve a serviço dos detentores do poder e os assentos dos três poderes por muito tempo estiveram ocupados e se alternando entre os grandes proprietários, a começar pelos primeiros engenhos de açúcar do Sec. XVI, passando para a mineração, a extração da borracha, os cafeicultores e agora o agronegócio sem esquecer, é claro, o sempre presente sistema financeiro. Essa pequena, mas poderosa parcela da população brasileira, sempre clamando pelo estado mínimo, mínimo para a população, mas grande e gordo para eles. É comum ouvir entre os mais velhos que na sua juventude, no interior, as rivalidades entre os políticos, após um pleito eleitoral, terminavam em uma grande churrasqueada paga pelo vencedor visto que os concorrentes aos cargos eram sempre os mesmos estanceiros e os pleitos nada mais que um simulacro da brincadeira infantil chamada “dança das cadeiras”. Esse relato vem desprovido da noção de que falta aí a representação de uma vasta parcela da população. É naturalizado que o poder político deva ficar a cargo do poder econômico e o interesse e necessidades da população em segundo plano. Todo o governo que tentou romper esta lógica foi derrubado: Getúlio, João Goulart e Lula/Dilma. Todas as tentativas de organização social horizontal, solidária, que buscassem autonomia e libertação da exploração por parte dos grandes proprietários, foram dizimadas. Exemplos são Canudos – Belo Monte, o Contestado ou os Muckers, para citar apenas três emblemáticos dentre tantos já ocorridos. Todos envoltos nas fake News da época de que eram grupos de ignorantes, fanáticos religiosos, bandidos que destruiriam as cidades, violentariam as jovens e todo o tipo de absurdo construído para demonizar estes grupos e obter o apoio da opinião do “cidadão de bem” para os verdadeiros genocídios ocorridos na virada do século XIX para o XX. E tudo se repete.
Para finalizar trago o pensamento de Renato Almendares que diz preferir olhar para o “furacão filosófico” em que estamos metidos, do que para a repercussão midiática da fala dos influencers das redes sociais. Segundo Renato, as questões midiáticas, a propaganda, são importantes no universo do convencimento, mas o medo também convence, uma arma na cabeça também convence. A estratégia do convencimento, que vai da sedução à violência, basta para reafirmar uma posição. Já a fundamentação não convence, mas faz todo mundo pensar. Quando deslocamos o foco das “estratégias de convencimento” para a argumentação, saímos do campo das “certezas” para outro lugar, para o distanciamento. Dividimos nossas dúvidas, compartilhamos nossas dúvidas, não estamos querendo “convencer” ninguém. Queremos pensar juntos. É diferente…bem diferente. Neste segundo contexto e só neste segundo contexto uma tese vale tanto quanto valem os argumentos. Cai o argumento….cai a tese. A democracia, a formação de um consenso racionalmente orientado encontra um espaço na linguagem, um espaço de possibilidade, um espaço possível. Fora disso é só “convencimento”… (dá sedução à violência).
Podemos dizer então que a democracia promove a inteligência e a possibilidade da reflexão enquanto as ditaduras são a negação de tudo isso. A ditadura é o espaço do convencimento.
A partir dessas colocações de Renato concluo dizendo que a manutenção da organização política e econômica histórica de nosso país, com o controle dos bens que são públicos nas mãos dos detentores do poder econômico, necessita do uso do convencimento, das frases feitas e dos dogmas religiosos para se perpetuar. Por outro lado, para mudar este estado de coisas, para abdicar de uma vantagem pessoal em nome do interesse coletivo tem que se ter um ARGUMENTO e isso dá trabalho. Comecemos já.