O Cancelamento de mulheres artistas na história da arte

 

 

Se buscarmos na Internet por “grandes nomes da história da arte” o resultado será: Vincent Van Gogh, Paul Gauguin, Édouard Manet, Paul Cézanne, Auguste Renoir, Auguste Rodin, Claude Monet, Pablo Picasso, Edgar Degas, Leonardo da Vinci, Rembrandt, Diego Velázquez, Sandro Botticelli, Paul Rubens, Francisco Goya, Gustave Courbet, Henri de Toulouse-Lautrec, Michelangelo, Marc Chagall, Wassily Kandinsky, Caravaggio, Eugène Delacroix, René Magritte, Candido Portinari. Se a busca for por “as obras de arte mais reconhecidas” teremos como resultado as produções desses mesmos artistas. Em algumas listas encontraremos Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Frida Kahlo sendo todas estas, se não nascidas, atuantes no século XX.

Por que as mulheres artistas não figuram nestas listas? Terão sido elas simplesmente discriminadas e não citadas pelos grandes autores que contaram esta história? Ou existe algo muito mais complexo percorrendo toda a história das mulheres na organização das sociedades?

Quando a historiadora da arte, escritora e feminista Linda Nochlin (1931 – 2017) faz a pergunta que dá título ao seu texto fundador para este tema, “Por que não houve grandes artistas mulheres?”, percebemos que o que vai moldar estas listas, predominantemente masculinas, está tanto na forma como a história foi contada quanto no contexto das mulheres artistas no decorrer dos séculos das sociedades ditas civilizadas.

Nochlin em seu artigo nos mostra como os historiadores relatam o percurso da arte baseada na genialidade, e a ideia de gênio, por sua vez, vinculada ao talento e maestria, algo inato, miraculoso e auto didático desconsiderando todo um contexto histórico, social, econômico, de gênero e raça. Ela desconstrói essa narrativa ao evidenciar que tais gênios, na verdade, eram filhos ou parentes próximos de artistas ou mesmo viviam no meio artístico, com acesso às instituições de ensino onde esses estudantes e trabalhadores destinavam dedicação exclusiva ao desenvolvimento de suas habilidades e talento. Ao desconsiderar a total influência deste contexto, onde as mulheres eram praticamente proibidas de frequentar, estas são excluídas da historiografia com a alegação de que a mulher era desprovida de talento e incapaz de grandiosidade. Cabe então aqui pensarmos na origem do papel e lugar da mulher na sociedade.

Linda Nochlin (1931 – 2017) Historiadora da arte, escritora e feminista

Por milênios e por diversas motivações, o lugar da mulher foi sendo definido como o espaço privado e o do homem como o espaço público, numa hierarquia de valor onde o público sobrepõe o privado. Se pensarmos nos primórdios, o feminino era reverenciado e cultuado num equilíbrio muito maior entre masculino e feminino. Vida e morte faziam parte de um ciclo incessante. A fertilidade da terra e a fecundidade feminina tinham a mesma importância vital e o feminino nomeou A Mãe Terra, A Natureza como geradoras de vida. Com o passar do tempo as culturas pagãs e politeístas passaram a dar maior importância aos deuses bélicos e masculinos e com a chegada do monoteísmo vem a definitiva quebra do equilíbrio, definindo como o único deus um ente onipotente, onisciente, onipresente e masculino, que serviu às novas civilizações para justificar o direito de autoridade absoluta do homem sobre as mulheres e o resto dos seres vivos do planeta.

Fora do campo místico e religioso, mas como influenciador e influenciado por ele, estão as questões práticas de sobrevivência. A sociedade humana teve início com pequenos grupos de caçadores e coletores. Na caça e na coleta, ambos os sexos contribuíam com bens econômicos importantes. A natalidade era controlada visto que a amamentação e os cuidados com as crianças impediam que as mulheres participassem das tarefas mais pesadas. A partir do surgimento da agricultura, em torno de 10000 aC, e o consequente estoque de alimentos, as mulheres passam a gerar mais filhos e a dedicar mais tempo ao cuidado destes. A subsistência passa a ser tarefa do homem e o poder passa às suas mãos dando surgimento ao patriarcado. Os filhos passam a ser mão de obra para o cultivo a ponto de algumas famílias adotarem o infanticídio para ajudar na taxa de natalidade eliminando as meninas. Alguns historiadores justificam o patriarcado como forma de garantir, com a maior certeza possível, que os filhos de uma mulher fossem do marido.

Nos grupos sociais que se definiram como patriarcais, e nem todos o fizeram, o feminino não só perdeu a relevância em relação ao masculino como também foi construída toda uma depreciação do “ser mulher” como forma de restringir sua existência ao espaço privado. Precedendo Eva, epopeias criadas séculos antes do cristianismo já colocavam a mulher como ser desobediente e corruptor da dignidade masculina. Assim, por exemplo na epopeia de Gilgamesh (sec VII aC – Uruk – Babilônia) uma mulher, “rameira”, é levada até Enkidu, um homem perfeito criado pelos deuses, afim de corrompê-lo com as “artes das mulheres”. No texto de Hesíodo, na Grécia Antiga, Pandora, mulher criada por Zeus, em um ato de curiosidade e desobediência, abre a caixa que continha todos os males e os distribui pela terra. Já no cristianismo Eva passa a ser a responsável por tirar o homem do paraíso e condenada a sofrer eternamente por sua desobediência.

Tertuliano [160 – 220] em seu livro de recomendações de conduta para as mulheres – A toilette das mulheres – diz:

“Tu darás à luz, mulher, em sofrimento e angústia. Tu estás sob as ordens do teu marido, e ele é teu mestre. E tu sabes que tu és Eva? Ela ainda vive no teu mundo, como um julgamento de Deus do teu sexo. Vive então, como deves, como uma acusada. O diabo está em ti. Tu quebraste o selo da árvore. Tu foste a primeira a abandonar a lei de Deus. Tu foste aquela que ludibriou o homem, a quem o diabo não sabia como vencer”.

 Posteriormente, na Idade Média, interpretações da filosofia aristotélica resultavam em argumentações que “comprovavam” a fraqueza essencial feminina e sua necessária submissão aos homens.

Plautilla Nelli Lamentation with saints-1569

A construção de uma depreciação das mulheres tanto por questões morais, como insuficiência intelectual, afim de justificar seu confinamento ao espaço privado nos faz pensar na educação das mulheres como um todo e em especial das mulheres artistas. Antes das academias formais o ensino da arte se dava em oficinas, as guildas, ou diretamente com artistas reconhecidos. As mulheres quando conseguiam ser aceitas como aprendizes, tinham que lidar com a presunção de sua menor capacidade intelectual. Em geral cabia a elas a gravura ou pintura de temas religiosos e retratos. 

No século XVI produziam principalmente miniaturas que podiam ser usadas em joias e pequenos painéis da Virgem e o Menino para veneração em espaços domésticos. Grandes painéis eram considerados inadequados pois sua realização necessitava de conhecimento de anatomia, que lhes foi proibido por séculos, e da ajuda de assistentes.

A posição legal das mulheres que às colocava sob tutela dos pais, irmãos ou marido e o descrédito nas suas capacidades constituíam mais uma barreira para que conseguissem ao término de sua formação abrir seus próprios estúdios.

No final do século XVII e início do XVIII surgem as academias oficiais de arte, a princípio proibidas às mulheres. Na França, por exemplo, foram admitidas a partir de 1784 e as poucas aceitas não tinham os mesmos direitos dos colegas homens. Eram proibidas de assistir as aulas de modelo nu, com a alegação de que estas aulas poderiam corromper as alunas fracas de caráter ou masculinizá-las e sua presença poderia tirar a atenção dos alunos homens e perturbar o ambiente, assim como aos próprios modelos. Eram também proibidas de frequentar o Museu do Louvre para não distrair os alunos que estudavam as pinturas. Só em 1896 foi permitido que frequentassem a Biblioteca da Escola e assistir as aulas de anatomia, perspectiva e história da arte. As mulheres ainda eram proibidas de participar de competições ou lecionar. Isso só vai começar a mudar com o feminismo no século XIX e com o aumento dos cursos particulares, aumentando também o número de mulheres na arte e a aceitação de seus trabalhos.

Uma reunião da Academia Royale de Peinture et de Sculpture no Palácio do Louvre (c. 1712-21) por Jean-Baptiste Martin

Uma reunião da Academia Royale de Peinture et de Sculpture no Palácio do Louvre (c. 1712-21) por Jean-Baptiste Martin

Mesmo com todas essas barreiras não foram poucas as mulheres que romperam esses obstáculos e realizaram trabalhos, até mesmo precursores, nos diversos campos dos saberes e das artes. Uma nova historiografia que vá olhar para o espaço privado ao qual as mulheres foram restritas, sem o desprezo em relação ao espaço público destinado aos homens, apresentará finalmente, a totalidade desta produção humana.

 

A seguir três exemplos que confirmam a frase da especialista na história do século XIX,  Michelle Perrot: “As mulheres não são passivas nem submissas”.

Timarete (ou Thamyris, ou Tamaris; século V a. C)

Grécia Antiga

Timarete (ou Thamyris, ou Tamaris;

século V a. C.)

 

Filha do pintor Micon, o Jovem, de Atenas. De acordo com Plínio, o Velho , ela “desprezava os deveres das mulheres e praticava a arte de seu pai“. Na época de Arquelau I da Macedônia, ela era mais conhecida por um painel da deusa de Diana que foi mantido em Éfeso. Éfeso tinha uma reverência especial pela deusa Diana. Embora não exista mais, foi mantido em Éfeso por muitos anos.  Timarete é uma das seis mulheres citadas por Plínio em sua obra História Natural no ano 77. As outras são, Irene, Calypso, Aristarete, Iaia e Olímpia. Também é mencionada no livro Mulheres Famosas de Giovanni Boccaccio (1313-1375).

Renascença italiana Sofonisba Anguissola (1532-1625)

Renascença italiana

Sofonisba Anguissola (1532-1625)

Foi uma pintora renascentista italiana, discípula de Bernardino Campi e de Bernardino Gatti. Foi a primeira artista a adquirir fama internacional de que se tem notícia.

Anguissola nasceu no seio de uma família nobre, mas relativamente pobre. Ela recebeu uma educação boa e completa, que incluiu as belas artes. Sua aprendizagem com pintores locais estabeleceu um precedente para que as mulheres pudessem ser aceitas como estudantes de arte. Ainda jovem viajou para Roma, onde foi apresentada a Michelangelo, que imediatamente reconheceu o seu talento, e para Milão, onde pintou o Duque de Alba e Isabel de Valois, mulher de Filipe II de Espanha, que era pintora amadora. Posteriormente em 1569, Anguissola foi convidada a ir para Madrid e ser tutora de Isabel, com o posto de dama de companhia. Mais tarde, ela tornou-se pintora oficial da corte do rei e adaptou o seu estilo às exigências mais formais de retratos oficiais para a corte espanhola. Após a morte da rainha, com ajuda de  Filipe realiza um casamento aristocrático. Mudou-se para Palermo e, posteriormente, Pisa e Génova, onde continuou a atividade como pintora principal de retratos, vivendo até a idade de noventa e três anos.

Suas primeiras obras são instigantes. Não só apresentam o universo feminino mas afirmam a capacidade intelectual da mulher, como em A partida de xadrez  onde Anguissola retrata uma cena íntima feminina em que suas irmãs, observadas por uma mulher mais velha, jogam xadrez.  O quadro demonstra o domínio da perspectiva, estudo não corriqueiro às mulheres e a contravenção de mulheres jogando xadrez, tido como um jogo intelectual e masculino.

Em Bernardino Campi pintando Sofonisba Anguissola ela é ainda mais instigante. Ao retratar seu professor fazendo seu retrato a artista coloca o personagem ativo, ou seja, o artista masculino, na posição passiva de retratado por uma mulher e não satisfeita, o objeto passivo que seria ela retratada pelo professor possui duas mãos esquerdas, uma, a da personagem passiva em pose para ser pintada e a outra,  ativa, segurando o bastão de apoio de pintura, reforçando que esta pintura foi feita por uma mulher.

Anguissola também realizou muitos auto-retratos onde aparece pintando quadros numa afirmação de sua atividade como pintora.

Hilma af Klint (Estocolmo 1862 - 1944)

Hilma af Klint

(Estocolmo 1862 – 1944)

 

Artista pioneira do abstracionismo. Em 1906 desenvolveu imagens abstratas, muito antes de alguns dos mais célebres artistas associados ao movimento da Arte Abstrata como o Wassily Kandinsky, Piet Mondrian e Kazimir Malevich. O trabalho da Hilma af Klint não é uma pura abstração da cor e da forma por si só, mas antes um retrato do que não é visível.

Pertenceu a uma das primeiras gerações de artistas mulheres a receber educação artística de nível superior, tendo frequentado de 1882 a 1887, a Academia Real de Belas Artes da Suécia. Participou de exposições, recebeu prêmios e chegou a ter um atelier, mas logo se afastou do treinamento acadêmico para pintar os mundos invisíveis, fortemente influenciada pelos movimentos espirituais de sua época, como a ordem Rosacruz, a teosofia e, mais tarde, a antroposofia.

Era membro-fundadora do grupo De Fem (As Cinco), todas mulheres que se reuniam às sextas-feiras onde faziam experimentações com escrita e desenhos automáticos, antecipando em trinta anos as estratégias surrealistas. Acreditavam ser conduzidas por espíritos superiores que desejavam se comunicar por meio de imagens.

Hilma af Klint deixou um acervo de mais de 1200 pinturas, aquarelas e desenhos, bem como seus cadernos de anotações e rascunhos, que excedem 26 mil páginas manuscritas e datilografadas.

Com base em ampla pesquisa, Hilma desenvolveu as próprias ideias e conceitos sendo, portanto, uma criadora na arte da pintura abstrata.

Três anos antes de morrer, em decorrência de um atropelamento, ela escreveu um testamento deixando seu legado aos cuidados do sobrinho Erik af Klint com instruções de que todo o acervo, que deixava organizado e catalogado, só deveria ser apresentado vinte anos após sua morte quando, acreditava, o público o compreenderia.

A obra de Hilma af Klint não apareceu na historiografia, ao lado da produção de Wassily Kandinsky, Piet Mondrian ou Kazimir Malevich. Mesmo depois de uma exposição realizada no Los Angeles County Museum of Art, em 1986, intitulada O espiritual na arte: pintura abstrata,  1890-1986, ainda existiam dúvidas sobre a adequação de colocar seus trabalhos ao lado dos de Kandinsk, Mondrian, Maliévitch e Kupka, o que vem corroborar com o que Nochlin dizia:  a obra de arte ocorre em uma situação social. Somente dentro de uma estrutura institucional – determinada por instituições específicas e definíveis, sejam academias de arte, sejam sistemas de patrocínio, mitologias do criador divino ou museus – pode uma arte “ótima” ser apreciada como tal. Os apreciadores da obra de Hilma af Klint precisam quebrar com esses cânones, pois ela ao contrário da ideia de gênio, mergulhou a maior parte de sua vida em um estudo profundo e trabalho árduo se eximindo de publitizar sua obra ou de frequentar as instituições legitimadoras.

Para finalizar nada melhor que o trabalho da Guerrilla Girls (Nova York-1985) que questionam se as mulheres têm que ficar nuas para entrar no Metropolitan Museum e mostram que 5% dos artistas apresentados na seção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos.

Guerrilla Girls é um grupo de artistas feministas anônimas cujo objetivo é combater o sexismo e o machismo no mundo da arte.

Fontes

WIKIARTE – Mulheres artistas

https://www.wikiart.org/pt/female-artists

Revisões feministas das histórias da arte: contribuições de linda

Nochlin e griselda pollock – Lina Alves Arruda

https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2011/Lina%20Alves%20Arruda.pdf

Rosane Vargas – Excluídas da Memória – Mulheres no Salão de Belas Artes do RIo Grande do Sul ( 1939-1962)

https://lume.ufrgs.br/handle/10183/114583

A toalete feminina em tertuliano: teologização, ascetismo e misoginia

http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1381951406_ARQUIVO_A_toalete_feminina_em_Tertuliano.pdf

Cuando dios era mujer: deidades femeninas de la antigüedad

 – https://www.escueladeateneas.com/2019/06/cuando-dios-era-mujer-deidades.html?m=1&fbclid=IwAR2R9QK5

qXQE2iD8eBLyNxyTOwoKYUBTxIPo4H3Jd9ln99kAcKNVHHeOiyY

As Mulheres Egípcias – https://antigoegito.org/mulheres-egipcias/

Hilma af Klint: mundos possíveis – Pinacoteca de São Paulo – 2018

Arte com Marcela Klayn – https://www.youtube.com/channel/UCm20BF3UbvSXi7SAPPM7QQg