“Estou te fazendo um favor”

Violência contra a mulher e a participação da arte na luta contra essa dura realidade.

O que para uns pode parecer inacreditável, para uma vasta parcela da população consiste em realidade cotidiana. Mulheres sofrendo agressões diárias por motivos insignificantes, autoestima destruída, corpos machucados e o desfecho final, o assassinato, são hoje fatos que habitam o noticiário de forma nunca vista. Este final de ano em especial, foi marcado pelo feminicídio. No dia 24 de dezembro, Loni Priebe de Almeida, de 74 anos, foi morta com um tiro na cabeça pelo ex-marido, em Ibarama no Rio Grande do Sul. No mesmo dia, Viviane Vieira do Amaral, de 45 anos, foi morta com 16 facadas na frente das três filhas pequenas, pelo ex-marido, no Rio de Janeiro. Também na véspera de Natal, Thalia Ferraz, de 23 anos, foi morta com um tiro disparado pelo ex-companheiro, na frente de seus familiares, em Santa Catarina. No Paraná, Evelaine Aparecida Ricardo, de 29 anos, foi baleada e morta pelo namorado. No dia 25, em Pernambuco, Anna Paula Porfírio dos Santos, de 45 anos, foi assassinada dentro de casa pelo ex-marido, na frente de sua filha de 12 anos e para finalizar esta mórbida lista, Aline Arns, de 38 anos, foi também morta a tiros pelo ex-companheiro, em Santa Catarina.

A Internet nos oferece uma gama de lives mostrando o trabalho de pesquisadores de diversos campos, da sociologia, psicologia ou do âmbito jurídico, que tentam identificar o que leva um homem a pensar que tem o direito de vida e morte sobre uma mulher e como se dá a complexidade de situações que fazem com que muitas delas permaneçam nesta condição de vulnerabilidade.

A juíza Ana Graziela Vaz de Campos Alves Correa, da 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá cita alguns motivos alegados pelos acusados de violência contra suas companheiras:

“Bati nela porque estava ouvindo música alta, música de paixão, acho que pensando em outro”; “Eu pedi, mas ela não me deixou ver as mensagens no celular dela”; “Saí de casa dizendo que não era para ir à casa da mãe e, mesmo assim, ela foi”; “Já tinha avisado que não queria que usasse aquele vestido curto. Mesmo assim, usou…”

Conforme a juíza muitos homens acreditam que suas namoradas ou esposas lhes devem obediência. Tomar suas decisões ou buscar igualdade de direitos representa para esses homens um ato de desobediência por parte das mulheres e essas atitudes exigem um castigo.

Trata-se de um universo de extrema complexidade onde muitas mulheres sequer reconhecem que sofrem violência já que as agressões não se restringem a ações físicas, mas também a violência psicológica. Ser xingada, ter suas capacidades intelectuais menosprezadas ou sua aparência física ridicularizada, leva muitas delas a acreditarem que não têm valor, que são incapazes de viver por sua conta e que ninguém mais vai querer sua companhia. É quando, conforme a juíza Ana Graziella, o agressor diz “ Estou te fazendo um favor”, o favor de ficar com elas, o favor de sustentá-las e elas suportam as agressões, por medo do futuro ou pelos filhos.

A posição da mulher e do homem na sociedade se dá pela forma como são construídos os significados de “diferença sexual” já desde a primeira infância. Apesar de alguns autores e autoras contemporâneos mudarem  a narrativa de submissão feminina, basta uma visita às histórias infantis que povoaram o imaginário das gerações anteriores e permanecem circulando até hoje, para constatarmos que a identidade social masculina se dá na relevância ao poder virtuoso, ao domínio, à conquista, o controle e o uso da violência para atingir seu propósito, enquanto o único objetivo da existência da princesa das histórias é a espera de um príncipe, e ela faz tudo para conquistá-lo, até que se casam e a história termina…tudo termina.

Vivemos em uma sociedade onde o patriarcado ainda nos ronda, mesmo nos casos em que a mulher é arrimo de família o homem é tido como “chefe”, mostrando que a questão cultural sobrepõe a financeira. Porém é certo que a independência financeira da mulher não só contribui com a autoestima mas elimina um dos grandes entraves na hora da difícil decisão de romper um relacionamento abusivo.

Dentro desta complexidade a objetificação da mulher seguramente faz parte desse emaranhado de circunstâncias. No caso do Brasil, desde o empreendimento da colonização tivemos índias e negras vistas como meros ventres destinados a formação de uma nova e vasta população, os mamelucos e os mulatos, que garantiram os territórios e até ampliaram as fronteiras da colônia portuguesa, como também constituíram a grande massa de mão de obra para os proprietários de terras junto com os escravos vindos da África. A objetificação acompanha toda nossa história, sob diversas formas, até chegar aos dias de hoje quando vemos os corpos femininos sendo usados em peças publicitárias para vender desde cervejas até pacotes turísticos. O fato é que travamos uma luta sem fim para trazer à tona nossa subjetividade. Lutamos inclusive com o fato de mulheres, que imersas nesse ambiente, acabam se auto-objetificando na busca de atrair atenção dos homens deixando em segundo plano e até mesmo desconsiderando atributos psicológicos e emocionais que as caracterizam enquanto indivíduos.

Nesse momento em que o Brasil e parte do mundo estão tomados por uma onda da extrema direita que se caracteriza pelo autoritarismo, o racismo, a supremacia branca, homofobia, xenofobia, genocídios de toda ordem, ataque à cultura e ciência e, claro, pelo machismo, pela violência e pulsão de morte, é de se esperar que o feminicídio tenha seus números aumentados assustadoramente, é de se esperar que as ameaças de morte à mulheres negras, pelo simples fato de serem mulheres e negras, estampem o noticiário como os casos das vereadoras em Santa Catarina e Paraná.

E como a arte se manifesta nestes momentos?

Sabemos que a história da arte não ficou imune ao apagamento das mulheres no seu relato, tanto que hoje busca-se encontrar esses nomes e trazê-los à luz. O site Mulheres Artistas ♀ – WikiArt.org possui uma lista de 436 mulheres artistas iniciando na arte pré-românica. Vale conferir.

Tendo a arte como formadora de consciência, atuante no tecido social e nas suas mudanças, trago quatro trabalhos contemporâneos que atuam na esfera do ativismo feminino:

As Guerrilla GirlsNova York, 1985

Em 1985 o grupo Gerrilla Girls realizou um manifesto performance em Nova York mostrando que no Metropolitan Museum apenas 5% do conjunto dos artistas são mulheres, enquanto 85% dos nus são femininos. O cartaz foi reproduzido em revistas e afixado em vários locais. O grupo volta em 1997, agora no MOMA, mostrando que ali a ausência das mulheres continuava a se verificar: entre os 75 artistas representados, apenas 4 eram mulheres.

Guerrilla Girls é um grupo de feministas do qual mais de 55 artistas já fizeram parte, sempre de forma anônima, umas por anos, outras por semanas. O objetivo é combater o sexismo e o machismo, as injustiças, a discriminação e apoiar os direitos humanos para todas as pessoas e todos os gêneros, utilizando-se de ironia mordaz e picante. Para manter o anonimato as componentes do grupo vestem máscaras de gorila e utilizam pseudônimos que se referem a mulheres artistas falecidas. Para elas o importante são os assuntos tratados e as performances realizadas e não os trabalhos pessoais.

No site https://www.guerrillagirls.com/ é possível acompanhar todas as performances do grupo.

Nan Goldin (Washington, 1953)

Nan Goldin é uma fotógrafa que se assumiu como vítima de violência ao se fotografar após sofrer agressão doméstica, em 1984. Nas fotos Goldin não esconde os hematomas, mas também não deixa de usar batom e joias, numa reflexão sobre as pressões que as mulheres estão sujeitas para serem mais atrativas aos parceiros, os mesmos que as deixam marcadas no corpo e na alma.

Goldin é uma das artistas incluídas no realismo social nas artes visuais, documentando facetas muito diversas da cultura e da sociedade contemporânea.

Suzanne Lacy e Leslie Labowitz  
(Los Angeles,1977)

Após uma série de violações e assassinatos de mulheres em Los Angeles, as artistas Suzanne Lacy e Leslie Labowitz realizam uma performance onde cinquenta mulheres vestidas de preto se postaram em frente à Câmara Municipal da cidade exibindo faixas que diziam: “Em memória às nossas irmãs” e “As mulheres reagem”. A performance teve tamanho impacto na cidade que ações como a da companhia telefônica, que antes havia se recusado a colocar um número de apoio às vítimas junto com os demais números de emergência, mudou de ideia ou a iniciativa de uma deputada que criou cursos de autodefesa para mulheres, principalmente para as que estavam empregadas. É a arte agindo no tecido social.

Grupo Corpos & Sombras – “Eu Mulher”

Aqui na nossa cidade o Grupo Corpos & Sombras está em fase de pesquisa para um novo trabalho intitulado “Eu Mulher”. Com direção de Cláudia Severo e participação de Amanda Flóis e essa que lhes escreve, além da colaboração de Andressa Moreira, Luísa Gonçalves e Dani Oliveira, o espetáculo consiste de uma criação coletiva e a pesquisa transita pela história de mulheres a frente de seu tempo, nas heroínas universais, nas guardiãs brasileiras de uma cultura de saberes milenares, na mitologia das Deusas e num vasto acompanhamento de relatos de pesquisadores e vítimas da violência. No canal do grupo no Youtube é possível conferir um primeiro vídeo criado durante a quarentena e na página do Facebook as fotos das apresentações ocorridas como processo antes da pandemia.