O racismo como tema na arte

Em entrevista para a edição de julho do Jornal Noticiário a professora e, naquela data, presidente interina do Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial, Nadir Maria de Jesus, referindo-se aos então recentes assassinatos de George Floyd, nos Estados Unidos , de João Pedro, adolescente baleado dentro de casa durante operação policial e de Miguel Otávio Santana da Silva, menino que estava aos cuidados da patroa de sua mãe e caiu do terraço do prédio de luxo, afirmou: O racismo infelizmente sempre esteve presente em nossas vidas. Estamos há mais de 300 anos com o joelho em nossos pescoços, a diferença é que agora, devido a tecnologia, alguns atos de violência contra o povo Negro estão sendo filmados e compartilhados para o mundo todo.

Mesmo já tendo tratado aqui deste tema tão triste e recorrente, penso ser fundamental que ele retorne tantas vezes quanto possível. Impulsionada por mais um assassinato que chega às mídias – e são inúmeros os que ficam ocultos-  a morte de João Alberto Freitas, homem negro de 40 anos, assassinado por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre, as ameaças de morte dirigidas à vereadoras negras eleitas em Santa Catarina e crianças negras mortas por balas perdidas em investidas policiais, tudo me faz voltar a falar do racismo em nosso país. Desta vez, porém, opto por trazer dois exemplos de produção artística que tratam do tema e fazendo ainda o recorte de mulheres negras criadoras. Na literatura trago Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e nas artes visuais, Aline Motta (1976), duas mulheres que tendo como ponto de partida suas vivências e raízes familiares, apresentam as condições sociais das mulheres e dos negros escravos do Brasil colônia e dos nossos dias, a partir das vozes dos oprimidos.

Maria Firmina dos Reis

                        (1822 – 1917)

Considerada a primeira mulher no Brasil a escrever romance com temática abolicionista. Foi professora e musicista. Publicou em jornais e revistas da época suas poesias e jogos de palavras.

A autora aborda de forma inédita a questão da servidão a partir da posição e da voz do negro. Num ambiente autoritário e patriarcal, Maria Firmina, mulher negra, sustenta suas posições numa demonstração de grande coragem.

São ainda confusos os dados biográficos a disposição mesmo sendo ela hoje, tema de diversas teses e publicações. Sua obra teve boa aceitação quando publicada, mas acabou caindo no esquecimento após sua morte. Foi só em 1962, quando o historiador Horácio de Almeida (1896-1983) encontrou em um sebo uma edição de Úrsula, que seu nome voltou a ser mencionado e reconhecido. Conforme o site Memorial de Maria Firmino dos Reis, ela nasceu em 11 de março de 1822 na cidade de São Luís, Maranhão. Filha de Leonor Felipa, mulata forra, que foi escrava do Comendador Caetano José Teixeira, comerciante e proprietário de terras da região, e João Pedro Esteves, de quem ainda não se tem informações precisas. Maria Firmina não chegou a conhecer o pai e em 1827, aos cinco anos de idade, mudou-se para a vila de São José dos Guimarães, passando a morar com a avó. Morou também na casa de uma tia materna. Era prima por parte de mãe, do escritor e professor maranhense Francisco Sotero dos Reis, figura proeminente na sociedade da época e presença marcante em toda a história de vida da autora. Em um de seus escritos intitulado Resumo de minha vida, Maria Firmina atribui à sua mãe o gosto pela leitura e escrita. Independente de qual tenha sido sua formação, já que os dados são poucos nesse sentido, o certo é que foi uma mulher de muita leitura chegando a fazer traduções do francês para publicações da época.

Em 1847 faz concurso estadual sendo na ocasião a única aprovada para instrução primária na Vila de Guimarães e passa a lecionar na casa de sua tia onde também residia. Era reconhecida como Mestra Régia, ou seja, professora formada e concursada.  Aposenta-se em 1881 após trinta e cinco anos de ensino das Primeiras Letras. Um ano antes de sua aposentadoria chegou a criar a primeira escola mista do Maranhão que funcionou até 1882. Localizada na cidade de Maçaricó, as aulas eram ministradas em um barracão na propriedade do fazendeiro Domingos Mondego e atendia as filhas deste e filhos de outros fazendeiros.

Como escritora não se eximiu em refletir sobre os acontecimentos da época num ambiente autoritário e patriarcal, que escravizava homens e mulheres. Nas obras, Úrsula e A Escrava aponta o tratamento de violência e servilismo a que homens negros e mulheres, negras e brancas eram submetidos. Maria Firmina coloca na voz do personagem Túlio a frase: “a mente ninguém pode escravizar” evocando a subjetividade do escravo numa demonstração de imensa coragem diante da elite patriarcal do século XIX, que considerava o escravo como objeto e mercadoria. Em Gupeva a autora aborta a temática indígena informando e criticando a postura do homem europeu em relação às mulheres indígenas. Ao não se omitir frente a estes temas, Maria Firmina estabeleceu seu lugar tanto na sociedade da época como na historiografia da literatura brasileira. Ao abordar a negritude a partir de seu lugar, dando voz aos personagens negros e igualando suas ações, falas e sentimentos a dos homens brancos, trazendo à tona a subjetividade destes personagens que até então ocupavam majoritariamente o lugar dos vilões das tramas, Maria Firmina consagra seu texto como inaugural da chamada literatura afro-brasileira e seu livro Úrsula é consolidado como primeiro romance de autoria negra e feminina do Brasil e o primeiro de cunho abolicionista na história da literatura brasileira.

A autora publicou ainda o livro de poemas Cantos à Beira-Mar, além de publicações avulsas de poesias, textos literários e jogos de palavras nos jornais da época. Compôs partituras e letras de músicas e hinos.

Aline Motta

Nascida em 1976, em Niterói (RJ), vive e trabalha em São Paulo. É bacharel em Comunicação Social pela UFRJ e pós-graduada em Cinema pela The New School University (NY).

Mesclando fotografia, vídeo, instalações e performance Aline busca montar uma genealogia familiar apoiada em relatos de história oral, documentos, arquivos familiares e até exame de DNA, que recriam laços afro-atlânticos de parentesco. Num percurso que sai da cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro, em direção a Serra Leoa, na África, a artista se lança numa jornada em busca de suas raízes.

Aline leva consigo as fotos de sua mãe, avó e outros familiares que vão povoando os lugares investigados por ela, numa ressignificação de tempo e espaço.

Encontramos no site da artista a seguinte sinopse:

Instigada pela revelação de um segredo de família, Aline partiu em uma jornada à procura de vestígios de seus antepassados. Ela viajou para áreas rurais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Portugal e Serra Leoa, pesquisando em arquivos públicos e privados e, ao mesmo tempo, criando uma contra-narrativa do que geralmente se conta sobre a forma como as famílias brasileiras foram formadas. Com base em suas experiências pessoais, o trabalho pretende discutir questões como o racismo, as formas usuais de representação, a noção de pertencimento e identidade em uma sociedade que ainda tenta um ajuste de contas com sua história violenta e as noções românticas de sua louvada miscigenação.

Na trilogia que começou com “Pontes sobre abismos”, passando por “Se o mar tivesse varandas” e terminando com “ (Outros) Fundamentos”, Aline procurou restabelecer laços com seus ancestrais através das águas que conectam as três cidades: Lagos/Nigéria, Cachoeira /BA e Rio de Janeiro/RJ. Neste sentido o elemento água ganha o significado de condutor de memórias e através de um pequeno espelho que reflete a mesma luz dos dois lados do Atlântico, busca alcançar uma comunicação possível.

Aline foi contemplada com o Programa Rumos Itaú Cultural 2015/2016, com a Bolsa ZUM de Fotografia do Instituto Moreira Salles 2018 e com 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça 2019. Recentemente participou de exposições importantes como “Histórias Feministas, artistas depois de 2000” – MASP, “Histórias Afro-Atlânticas” – MASP/Tomie Ohtake. Abriu sua exposição individual “Aline Motta: memória, viagem e água” no MAR/Museu de Arte do Rio 2020. Seus vídeos participaram recentemente do GRIOT- Festival de cinema negro contemporâneo e em outubro participou de uma live do Cineros Institute MOMA em conversa com Hélio Menezes e Thomas J.Lax. Vale conferir esta fala em https://youtu.be/I82fWQM7z3Y. Imperdível também acompanhar o site da artista onde estão os diversos vídeos e fotos que compões este trabalho. O endereço é http://alinemotta.com/

Fontes:

 repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/305305/1/Santos_CarlaSampaiodos_M.pdf – Carla Sampaio dos Santos – A escritora Maria Firmina dos Reis: história e memória de uma professora no Maranão do século XIX.

https://mariafirmina.org.br/ – Memorial de Maria Firmina dos Reis

https://youtu.be/mT7o1404uGU  – Regia Agostinho da Silva – Doutora em História pela Universidade de São Paulo, Rafael Balsieiro Zin – Sociólogo e Caio Souto – Professor de filosofia