Os Retratos de Fayum

Rosana Almendares

Retrato de Fayum é o termo utilizado para definir uma série de pinturas que datam do final do período Ptolomaico  (323 a.C-30 a.C) quando o Egito encontrava-se sob ocupação do império greco-romano. Uma das colônias gregas no Egito, era Fayum onde, no séc. XVII, foram encontrados, os primeiros retratos que não se restringiam a essa localidade, mas que acabaram conhecidos pelo seu nome.

Os retratos são um grande exemplo do hibridismo de culturas, onde a mumificação egípcia dos corpos se mescla a representação grega da imagem humana. Ao contrário da forma esquematizada das máscaras mortuárias egípcias ou do perfil utilizado na pintura para representar o mundo dos deuses, os retratos de Fayum são frontais e ricos em detalhes. A representação no Antigo Egito era carregada de códigos e símbolos e a esquematização visava a busca do essencial, que libertasse a imagem das imperfeições humanas. Já os retratos de Fayum, justo pelo contrário, buscavam as características humanas que na visão deste período grego, enalteciam as virtudes do retratado. Posteriormente a arte dos primeiros cristãos buscará novamente na esquematização e através do uso da representação simbólica, atingir de forma plena, o espiritual e essencial, distanciando assim o mundo celestial dos pecados mundanos.

O retrato era fixado à múmia na altura do rosto. O objetivo de tal prática seria a de “facilitar” a identificação da alma do falecido por parte de seu duplo, que viria conduzi-lo no mundo pós-morte.  As pinturas eram feitas com o modelo retratado ainda vivo e em pleno vigor fazendo parte de um ritual para a morte. Isso se confirma pela análise das múmias onde foi constatado que a idade do corpo no momento da morte é superior à das imagens que a acompanham.

Provavelmente estas pinturas, permaneciam até o momento de seu destino final, adornando a casa do retratado visto que algumas foram encontradas com vestígios de moldura. Outro sinal deste uso temporário é o fato de que a pintura completa abrangia o modelo até a altura dos ombros e com requinte de detalhes. Só quando colocadas na múmia é que apenas o rosto ficava em evidência. Mesmo que a maioria das pinturas encontradas sejam de homens e mulheres em sua idade adulta e plena, foram encontradas em menor número pinturas de crianças nos levando a imaginar que mesmo uma morte inesperada exigia um retrato e que neste caso teria sido realizada após a morte .

Através dessas imagens podemos ter noção das vestimentas da época, dos adornos e até, em função dos penteados, ter ideia do período em que viviam tais personagens. A riqueza de detalhes, a maestria dos volumes e tratamentos pictóricos destinado a representação da pele e dos tecidos é deslumbrante. Chama a atenção a forma de apresentar os olhos do retratado. O “artista” (e aqui uso esse termo apenas para facilitar a comunicação, visto que só no renascimento, séc. XV, que se estabeleceu a noção de artista como indivíduo, a noção de autoria e a distinção entre arte e vida), o artista capturava a subjetividade do retratado, seu estado de espírito e os olhos são fundamentais neste sentido. O retratado está em postura de suspenção, de trânsito entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Os grandes olhos contemplam o mundo dos vivos e estarão atentos ao mundo dos mortos. Mesmo existindo um padrão na postura dos retratados, ou seja, este estado de suspensão, percebe-se um semblante sutil de preocupação em algumas imagens ou de um singelo sorriso em outras. Estas foram pinturas feitas para não serem vistas no futuro. Foram feitas para serem enterradas e justo esta finalidade, associada ao clima quente e seco da região, fez com que, ao contrário do que imaginavam seus criadores, elas chegassem até nós, desvirtuando de certa forma seu destino.

E imaginar que este é apenas um fragmento mínimo de toda a produção simbólica realizada por milhares de anos durante a existência do homem neste planeta, que sempre, de uma forma ou outra, através das mãos, mente e corpo dos artistas, deu vazão aos seus desejos, crenças e pensamentos, utilizando da imagem, da representação, da atuação, da poesia, da música e da escrita. Por séculos e séculos de existência a arte – por meio dos artistas – vem comunicando, por vezes sendo usada pelo poder estabelecido, mas ao mesmo tempo sendo vigoroso instrumento de contestação – Francisco de Goya é um excelente exemplo disso. Que tristeza é saber que em pleno século XXI ainda temos que explicar que arte não se resume ao entretenimento, e que artista não é um desocupado. Que tristeza termos que responder para certos vereadores que aula de cavaquinho é sim contrapartida para recursos recebidos pela lei EMERGENCIAL Aldir Blanc, com o objetivo de dar um leve respiro para mais esse segmento da sociedade que teve suas atividades interrompidas pela pandemia. Ao meu ver, sequer seriam necessárias as contrapartidas, uma vez que este auxilio se destina a manter as condições mínimas daqueles, que pelo simples fato de existir, já produziram e permanecerão produzindo “contrapartidas”. Se tivéssemos o verdadeiro entendimento da importância da criação artística, esse sequer seria o momento para processos de seleção entre produção “boa” e “ruim”, madura ou principiante que nos mantém na lógica da verticalidade e hierarquia de processos. A hora é de simplesmente se manter ativos os artistas para que eles por sua vez, mantenham em movimento a produção do simbólico, do subjetivo, da contestação, da não aceitação passiva de dogmas. Que mantenham viva a criação de tudo aquilo que for capaz de nos fazer refletir e pensar, para que não nos esqueçamos que existem limites que não podem ser ultrapassados em nome de interesses, os limites do comum, aqueles que permitem que vivamos em uma sociedade minimamente digna.