Raça, verdade ou forma de justificar o injustificável?

Por Rosana Almendares

 

No livro Racismo Estrutural (São Paulo- Pólen, 2019), Silvio Luiz de Almeida aponta que a noção de raça como referência à distintas categorias de seres humanos, remonta a meados do século XVI e não pode ser desvinculado do contexto das grandes navegações, da expansão econômica mercantilista e da consequente reflexão sobre a multiplicidade da existência humana. “…o contexto da expansão comercial burguesa e da cultura renascentista abriu as portas para a construção do moderno ideário filosófico que mais tarde transformaria o europeu no homem universal…e todos os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais europeus em variações menos evoluídas”.

Se o iluminismo lançou as bases teóricas que resultaram no conceito de civilização baseado na liberdade e igualdade universais, fundamento das grandes revoluções liberais contra as instituições absolutistas, como o europeu do século XIX poderia justificar as contradições dos processos de colonização dos territórios nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania? Segundo Silvio Almeida “é neste contexto que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possam operar simultaneamente como fundamentos irremovíveis da sociedade contemporânea”.

Nada mais adequado para naturalizar os horrores cometidos nos processos de colonização, processos sempre acompanhados de assassinatos, genocídios, torturas e as piores práticas inimagináveis, do que afirmar que tais povos pertenciam a raças inferiores. Eram tidos por infelizes, degenerados, animais irracionais, sem história, bestiais e envoltos em ferocidade e superstição, ou seja, desumanizados. “O neocolonialismo assentou-se no discurso da inferioridade dos povos colonizados, que segundo seus formuladores estariam fadados à desorganização política e ao subdesenvolvimento”.

Mesmo que no século XX a antropologia e a biologia tenham demonstrado que diferenças biológicas ou culturais não justificam o tratamento discriminatório entre os seres humanos, a noção de raça continua sendo usada para naturalizar a desigualdade em nossa sociedade e genocídios cometidos.

No Brasil a naturalização da morte de jovens negros, a naturalização do fato de a maior parte da população carcerária ser de negros, do baixo número de negros em posições de administração, a naturalização da extinção dos povos indígenas, a aversão que parte da população tem à governos que colocam estas pessoas no orçamento do Estado, demonstra quão eficaz foi essa construção de raça hierarquizada e como continua a serviço de justificar o injustificável.

Entrevista

Nadir Maria de Jesus

Nadir Maria de Jesus é professora aposentada, ex-conselheira tutelar, foi vice-presidenta do Conselho de Matriz Africana, Educadora Social, chefe do Departamento de Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos de São Leopoldo e presidente interina do CMPIR (Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial).

Minha primeira pergunta para a professora Nadir foi em relação aos recentes assassinatos que tiveram repercussão mundial resultando em protesto pelo mundo a fora, especificamente o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, imobilizado no chão, dizendo ‘não consigo respirar’ enquanto o policial mantém o joelho sobre seu pescoço, o de João Pedro, adolescente baleado dentro de casa durante operação policial e de Miguel Otávio Santana da Silva, menino que estava aos cuidados da patroa de sua mãe e caiu do prédio de luxo, os dois últimos casos ocorridos no Brasil.

Professora Nadir – O racismo infelizmente sempre esteve presente em nossas vidas. Estamos há mais de 300 anos com o joelho em nossos pescoços, a diferença é que agora,  devido a tecnologia, alguns atos de violência contra o povo Negro estão sendo filmados e compartilhados para o mundo todo.

As desigualdades entre etnias são enormes e se evidenciam em todas as áreas, mas fica mais evidente na área da habitação e na inclusão no mercado de trabalho. Negros, mesmo sendo a maioria no Brasil, se encontram nas vilas, nas favelas, ocupam os cargos mais vulneráveis e ainda são em menor número nas universidades e faculdades. Isso não se dá por falta de interesse e sim por falta de oportunidades.

Neste momento os Movimentos Negros em todo país estão em alerta e se mobilizando contra toda forma de racismo com o tema: Vidas Negras importam.

Estamos vivendo um momento muito ruim, de muito ódio e se queremos mudanças precisamos ter representatividade nos diversos setores, principalmente na política. Não que as pessoas não negras não possam estar nos auxiliando, claro, pessoas anti-racistas, que estão na luta conosco, mas somos nós, que temos mais melanina na pele, é que sabemos exatamente o nosso sofrimento diário. Minha fala é a de que nós possamos estar dentro de um espaço de poder, para criar projetos para os jovens, poder realmente atuar, por exemplo, na questão das pessoas autônomas que muitas vezes por baixa escolaridade não conseguem um serviço melhor. É necessário estimular os jovens, homens e mulheres negras, representantes LGBT a participarem da política para deixar a cara da câmara de vereadores com a nossa cara, já que lá é a casa do povo então o povo tem que estar também lá, no espaço de poder, e não só sentado ouvindo os vereadores.

Hoje em São Leopoldo as questões do povo negro são tratadas no Comitê da Saúde da População Negra; Comissão étnico racial dentro do Hospital Centenário; Comissão étnico racial dentro do SEMAE; Núcleo étnico racial na SMED onde durante o ano todo visitamos escolas , desde a educação infantil até  os EJAs,  levando discussões sobre a lei 10.639 com cine debates e oficinas de Abayomi, formação junto a GCM, debates em OSCs e empresas privadas, atividades dentro de CTGs – reconhecimento aos Lanceiros Negros – inclusão da história contemporânea da comunidade Negra dentro do Museu Visconde de São Leopoldo, inclusão da cultura negra dentro da São Leopoldo Fest – desfile de mulheres negras e orixás-; criação do Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial. Outras ações afirmativas do departamento de Igualdade Racial da secretaria de Direitos Humanos: formação étnico racial em terreiros de umbanda; participação em atividades com os imigrantes senegaleses e haitianos, também com a aldeia Indígena Kaigang da Feitoria.

Nadir Maria de Jesus que é pré-candidata a vereadora pelo PT, finaliza: só poderemos fazer realmente grandes avanços quando nós estivermos lá na decisão, porque muita gente fala por nós, homens falam muito por nós mulheres, brancos falam muito por nós negros, negros falam muito pelos indígenas e assim vamos sempre dando espaço para outras pessoas. É necessário ocupá-los.