MESTIÇO É QUE É BOM
Uma homenagem a Darcy Ribeiro
Que falta faz Darcy Ribeiro agora. Imaginar que já tivemos pessoas desta estatura pensando o Brasil, criando universidades, atuando nos quadros do governo e hoje nos vemos em meio a terraplanistas que atacam a cultura por medo do pensamento crítico e discriminam seguimentos da população incentivando o preconceito e racismo. Mas resta a obra de Darcy Ribeiro, seu legado, que nos apresenta o Brasil como uma etnia nacional, um povo-nação assentado em um território. O brasileiro como a utopia de um novo começo, diferente do que já havia. Um Brasil mestiço de brancos, indígenas e negros e por isso mesmo valoroso.
O NOVO MUNDO
Os primeiros europeus que aqui chegaram logo se misturaram aos indígenas, povoaram a região com os mamelucos, criaram algo novo. Não tinham por objetivo transformar estas terras em uma réplica da Europa. Desde Portugal sonhavam com um mundo novo, colorido, onde todos teriam o que comer e um abrigo para viver. Aqui chegando encontraram uma população alegre, que agradecia aos espíritos pelo mundo ser tão bonito e cuja finalidade da vida era … VIVER.
O extermínio dos indígenas por parte do europeu só teve início a partir de 1530, quando a corte decidiu transformar o Brasil em colônia produtiva. Os dois projetos de colonização que se opunham, ou seja, o colonial que queria aliciar os indígenas como força de trabalho e o religioso que queria criar com esses indígenas uma república, levaram ao genocídio e a tentativa de anular a cultura destes povos.
Aprendemos com Darcy Ribeiro que existe pouca coisa mais resistente do que a etnia. Ela é garantida através da transmissão de conhecimentos dos pais para os filhos. É assim que ciganos são ciganos e judeus são judeus por milênios apesar de tudo pelo que já passaram. E os indígenas resistem. Resistem como um povo que tem o costume de compartilhar os saberes e não guardá-los para adquirir poder ou dinheiro, onde a terra é de todos e o chefe é o representante da cultura e da experiência daquela etnia sem jamais dar ordens a qualquer um. Resiste seu conhecimento da medicina natural e principalmente sua sabedoria em viver em harmonia com a natureza. O indígena sempre será indígena e quando lutamos pela garantia de seus direitos estamos protegendo a nós mesmos, a nossa origem, a nossa identidade, a nossa história como brasileiros.
Há muito desconhecimento e preconceito em torno deste assunto. Acredito que uma das causas se deva às informações supérfluas, se não distorcidas, que recebemos desde os bancos escolares. Minha geração aprendeu que o Brasil foi “descoberto” pelos portugueses sem que se considerasse o fato de que aqui já existiam milhões de indígenas e que em poucos anos esses milhões foram transformados em alguns milhares devido aos massacres ocorridos. Aprendemos na escola alguns de seus costumes, seu legado para nossa culinária e que eram preguiçosos no trabalho escravo. Comemorávamos o dia do índio como data de festa, sem o entendimento de que é uma data de luta e conscientização.
Hoje, graças à internet, temos acesso facilitado a estudos de antropólogos, sociólogos, indigenistas e ambientalistas que há muito se debruçam sobre este tema. Existem documentários e filmes maravilhosos, além de sites de organizações que lutam pelos direitos destes povos. Porém estas informações não chegam aos veículos de massa com a força que deveria. Ao contrário, vemos programas patrocinados pelo agronegócio apresentando “casos de sucesso” de parcerias entre este setor e aldeias indígenas, sem mostrar o contraponto de que essa prática não é consenso entre os povos e sem mostrar as invasões de terras e assassinatos que estão ocorrendo nas diversas regiões brasileiras promovidos por agropecuaristas, mineradores e grileiros. O atual governo por sua vez, incentiva estas ações seja por declarações infelizes, seja por ações diretas dos ministérios do Meio Ambiente, Justiça, Agricultura e Direitos Humanos cujo último interesse neste momento é o reconhecimento dos direitos dos povos originários.
Entrevista
Kátia Simone Muller Dickel, Mestre em educação – UFRGS
Kátia Simone Muller Dickel é formada em Letras Português /Espanhol pela Unisinos (2008) e foi justamente na graduação, numa aula de Literatura que se sensibilizou pelas questões indígenas.
Conta Kátia:
A aula era sobre as contribuições da cultura indígena e em meio à preconceitos e julgamentos referente ao modo de ser e estar no mundo desses povos, surgiu o desejo de fazer meu trabalho de conclusão sobre a temática indígena na escola. No primeiro semestre de 2006 conheci meus amigos kaingang da Aldeia Por Fi Gã, localizada em São Leopoldo, num bairro próximo à minha casa. A partir de então, começamos juntos a trançar estratégias de projetos interculturais. Em 2009, entrei na UFGRS num programa de educação continuada, oferecido pelo governo federal. Nesse ano conheci vários estudantes kaingang e muitos pesquisadores estudando sobre os povos originários. Em 2010 passei na seleção de mestrado e minha orientadora da pesquisa foi a Dr. Maria Aparecida Bergamashi, uma líder no grupo de pesquisa (CNPq). Minha pesquisa de mestrado foi sobre as experiências interculturais de estudantes kaingang que frequentavam uma escola não indígena. Realizei um estudo etnográfico dentro da Aldeia, acompanhando as aulas do professor, Mestre em educação pela UFRGS – Dorvalino Refej Cardoso, durante o ano de 2011 e 2012. E em 2012 também acompanhei as aulas de um grupo de kaingang dentro de uma escola não indígena (Escola Estadual Haydée Mello Rostirolla), localizada no nosso bairro Feitoria-Cohab. A partir de meu estudo ficou evidenciado as dificuldades desse povo e suas estratégias de convivência com o outro, pois na escola não indígena ainda predomina a idealização por parte de algumas pessoas dessa comunidade escolar como também preconceitos. A partir de minha pesquisa senti a necessidade de fazer um trabalho de intervenção com essa comunidade que chamo de sensibilização, num futuro trabalho de doutorado. Os estudantes kaingang precisam ser acolhidos, me parece que a escola Haydée apenas presta um favor à comunidade indígena, já que a escola na Aldeia é de Ensino Fundamental até o 5º ano, portanto, as crianças e jovens que desejam seguir seus estudos precisam frequentar escolas fora. Os enfrentamentos são inúmeros desde o modo de ser e estar no mundo até o modo de se comunicarem. Uma parcela da comunidade escolar não indígena deseja conhecê-los, mas não sabe como fazer esse processo, outra parte rotula os estudantes kaingang de incapazes, problemáticos.
“Nesse sentido, percebi que pouco se sabe ou se investiga sobre a cultura indígena, sobre seus desejos, seus fundamentos culturais, seus valores – enfim sua mentalidade e sensibilidade diante da vida. Ou seja, ainda o que mobiliza o interesse pelos indígenas é o exótico. E, uma das questões que me parece pertinente é: até quando a comunidade Haydée continuará desconectada dos estudantes Kaingang? Quais aprendizagens surgiriam se essa escola fizesse visitas à escola indígena e à Aldeia Por Fi a fim de não só conhecer o lugar, mas de dialogar, experimentar, viver-com e sentir-com? Os desafios são muitos e se lançam em diferentes sentidos – entre eles, as práticas pedagógicas e as políticas públicas. A relação de convivência entre os indígenas e a comunidade Haydée está costurada com os fios da incompreensão, dos conflitos, das ambiguidades e dos desencontros, formando a rede do viver-com as diferenças. Embora haja a aceitação das diferenças, por parte dos alunos não indígenas, que os aproximam, há distanciamentos entre os Kaingang e os professores, causados pelo emaranhado de incompreensões. As exigências de bom comportamento fazem parte desse emaranhado. Assim, os estudantes Kaingang experimentam sabores e dissabores nessa relação conflitiva.” (DICKEL, p. 83, 2013). Diante dessas considerações da minha dissertação como também diante do panorama político no nosso país onde há imposições no sentido de “despejar” os mais de 300 povos indígenas, cada um com suas especificidades dentro do mesmo sistema capitalista vejo o retrocesso e muito descaso por parte da atual conjuntura política do país. De acordo com algumas pessoas da comunidade kaingang as políticas públicas pararam de crescer, isso deve ser pelo crescimento das populações indígenas que acarreta em mais desigualdades em múltiplos planos acerca da nossa sociedade. Quando falo de retrocesso é dentro do sentido de que há uma imposição por parte de governantes de integrar essas populações, violando os seus direitos de terem uma educação intercultural e diferenciada, por exemplo. Numa roda de conversa dentro da Aldeia Por Fi Gã, uma das mulheres mais velhas dessa comunidade, Dona Lurdes, desabafa do quanto é dolorido viver na cidade, longe de suas ervas medicinais, dos rios, da mata. A vida na zona rural é um desafio constante para continuarem passando seus ensinamentos culturais. Há uma influência e uma interferência muito grande nos seus costumes. A nossa sociedade foi cruel quando empurrou esses povos para as cidades. Dentro dessa perspectiva vejo o quanto a política pública está engatinhando, agora, nesse momento atual, está estagnada. É preciso dar voz às pessoas indígenas, escutá-los, ouvir suas queixas e anseios para juntos trançarmos estratégias de uma vida mais digna. Isso é o mínimo que devemos nos propor a fazer.